Cena 2
Luzes. Cenário: quarto de Dominique ( músico). Ele se levanta assustado de uma cama enquanto Irmã entra espevitada no quarto falando sem parar. Com alguma ação. Ela pode ir dobrando algumas roupas. (Essas roupas vão ser usadas pelo marido na cena 3).
Irmã: Acorda, Dominic. Nossa senhora. Tem dormido mais que a cama. Lembra disso? A vovó. Louca, né? Às vezes eu sinto falta dela. Mas era sempre isso. Dormiu mais que a cama, não tá no gibi, será o Benedito, fulana cozinha pedra em santo, eu conheço o meu eleitorado. Eu conheço o meu eleitorado. Era um monte, lembra? Fulana cozinha pedra em santo era ótima. Quantas sofreram. Perdi a conta. Titia coitada. Era muita titia que cozinhava pedra em santo. Eu nunca consegui entender. Você já parou pra pensar?
Dominic: O quê?
Irmã: Você não tá ouvindo o que eu to falando Dominic?
Dominic: Das nossas tias.
Irmã: Claro que não. Dominic? Eu lá vou ficar falando de titia?. Mas será o benedito? Odeio esse nome. O que tem de aluno meu me chamando de titia não tá no gibi. Se eu não cozinhasse pedra em santo eu ia ser cozinheira. Empgragada até. Tudo menos professora só pra não ser ser chamada de titia. Titia, titia, vovó, Dominique. Eu to falando da vovó. Você tem andado muito esquisito ultimamente. Ai que frase estranha. To parecendo até ela. Mas é verdade, Dominic. Verde. Você tá verde. Lembra daquela sala de estar que a gente tinha quando a gente morou no Peru. Lima, lembra? Era branca, né? À primeira vista era branca, mas se depois você comparava com um branco, branco mesmo, o branco de uma camisa ou chemise, de uma meia soquete, um vestidinho de algodão, sei lá, até de plástico dava pra ver que era verde. Era verde. Um verde clarinho, mas verde que parecia branco quando a gente não comparava com nada. Entrava na sala era branco. Mas quando botava o branco do lado virava verde. Era muito engraçado. Mas era verde. E você tá assim. Que nem a parede da sala de TV na casa do Peru.
Dominic faz uma reação bem típica dele. Pode ser uma virada de cabeça. Ela nem vê.
Irmã: Engraçado. Eu falei da vovó e nem falei do papai e da mamãe. Não sei por quê? Não sei porque isso. Até parece, né? (Ri). Até parece que eles foram pais sociais. Sei lá. Jantar fora, coquetel, recepção. Mas tinha, né? Muito momento. Muito momento bom. Ai, eu me lembro daquele barbeador elétrico. Nossa. Gigantesco pra época, mas era muita novidade. O papai tratava aquilo de um jeito. A gente nem podia chegar perto.Tinha trazido dos Estados Unidos numa daquelas viagens. E era meio primitivo. Tinha uma parte que não podia encostar porque dava choque. Eles entraram no quarto bem na hora que eu tomei. Era um horror. Eu não entendia porque eu não conhecia choque. Criança, né? Não sabia que aquele negócio que eu sentia encostando no, no, no, no, no, no... barbeador era choque. E engraçado que era ruim, claro. Tomar choque é ruim. Mas não era. Enfim. Porque eu não sabia o que era então não era. Enfim. Eu também sinto falta deles, claro. Por que eu não sentiria. Até parece. Eu gostava muito. Eu gostava muito do papai e da mamãe. (se convencendo). Eu gostava muito do papai e da mamãe. E você?
Pausa
Dominic: Você tá perguntando se eu gostava do papai e da mamãe?
Irmã: É.
Vai questionar Irmã mas desiste.
Dominic: Gostava. Eu sempre gostava.
Irmã: Ai que bom. A gente sempre foi uma família feliz. Ih, gente. Olha aí. Frase estranha de novo. Não sei o que tá acontecendo comigo hoje. Louca que nem a outra. Levanta Dominic. (E se senta do lado dele) Que agonia! Ô Dominic. O que é que tá acontecendo? Você tá verde. Tem alguma coisa acontecendo que você quer me falar? Você tá com algum problema? Como é que tão os ensaios?
Dominic: Bem.
Irmã: (Em cima) Ah, que ótimo. Eu já tava achando que era problema nos ensaios. Problema com trabalho. Mas também se fosse, resolvida. O que não tem solução, solucionado está.
Dominic: De novo.
Irmã: O quê?
Dominic: Você usou uma frase da vovó. De novo.
Irmã: Usei. Nem percebi. E a peça?
Dominic: O que é que tem a peça?
Irmã: Já terminaram?
Dominic: Ainda não.
Irmã: Que ótimo. Sinal de que tem coisa por aí, né? Então vamos levantar tomar um café, botar um rouge nessa cara pra tirar essa cor de parede de sala de estar do Peru. Brincadeira. Ah, sabe do que eu tava me lembrando? Da vovó. Aquela música que a vovó cantava pra gente quando eles tavam viajando?
Dominic: Música.
Irmã: É. Sempre que ela ficava com a gente quando o papai e a mamãe viajavam. Tinha uma música lembra?
Dominic: O que é que tem?
Irmã: Pode te ajudar com a sua peça.
Dominic: Porquê?
Irmã: Não sei. Ela era tão bonita. De repente pra animar os ensaios.
Dominic: É. Pode ser.
Irmã: Qual que é essa mesmo?
Dominic: Essa o quê?
Irmã: Essa peça que você tá compondo.
Dominic: O que é que tem?
Irmã: É sinfonia? Não, sonata?
Dominic: Fuga. A peça é uma fuga.
Irmã: Orquestra ensaiando uma fuga.
Dominic: Fuga a duas vozes.
Irmã: Eu nunca te vi ensaiar sem antes terminar a peça. Sempre compunha a peça inteira e depois levava pra orquestra. Mas muda, né? Tudo muda. As coisas vão mudando, as pessoas vão mudando, banco de praça mudando, sinal muda muito também. Mão de rua às vezes é uma loucura. E aqueles prédios loucos que surgem do nada, muda tudo. Paisagem muda tudo.
Dominic: E você?
Irmã: O quê?
(pausa)
Dominic: Eu perguntei de você.
Irmã: O que é que tem eu?
Dominic: Como é que você tá?
Irmã: Eu to bem. Por que é que eu não taria?
Dominic olha para Irmã. Ele diz tudo no olhar. Tipo... Tudo. Ela fica um pouco incomodada.
Irmã: (olha pro lado) Nâo entendo pra quê cinzeiro no quarto se você não fuma...
Irmã pega o cinzeiro e vai saindo. Dominic a para.
Dominic (dúbio): Como é que ele era?
Irmã: Ele quem?
Dominic: A música? Como é que era a música?
Irmã meio paralisada canta para Dominic. Ele se emociona. Mas não por causa da música. E sim por causa da ausência dela. (Como mostrar isso sem texto?).
Irmã: Dominic. O que é que foi? É a música.
Dominic: Não. Exatamente o contrário.
Irmã: O que?
Dominic: Eu sei que você sente muita saudade dele.
Irmã: Você tá falando da vovó?
Dominic: Apaga a luz quando sair.
Irmã: Mas você acabou de acordar!
Um comentário:
Estou curioso em saber o que significa "cozinhar pedra em santo", que aparece no segundo parágrafo do trecho da obra acima.
Alguém sabe esclarecer?
Grato.
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