sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

O ciso

Paulo: Bom dia. Meu nome é Paulo.

Todos em coro: Oi Paulo.

Paulo: Bom. É… Por onde é que eu começo. Eu… (pausa) Ontem… (pausa).

Tutor: Paulo. A gente sabe como o primeiro dia é difícil. Se você não quiser falar muito não precisa. Mas é importante falar.

Paulo: Eu sei. Eu vou falar.

Tutor: Fica tranqüilo. Vamos lá. Eu vou te ajudar. Você pode começar contando pra gente se você é profissional, paciente ou outros.

Paulo: Outros?

Tutor: Secretários de consultórios, assistentes, pessoas que se fazem passar por profissionais.

Paulo: Existe isso?

Tutor: Aqui dentro, felizmente não mais. Mas já existiram. Eles se recuperaram.

Paulo: Credo.

Tutor: É importante não julgar, Paulo. Todos nós aqui queremos nos ajudar.

Paulo: Você tá certo. Desculpa.

Tutor: Então.

Paulo: Então o quê?

Tutor: Você é paciente?

Paulo: Não, não. Eu sou dentista mesmo.

Tutor: E porque você procurou a gente?

Paulo: Bom, porque…

Tutor: François! Pára de ouvir o barulhinho do motor no I pod!

François: Perdão.

Tutor: Desculpe, Paulo. Prossiga.

Paulo: Bom, como eu ia dizendo… há mais ou menos uns seis meses que eu estou enganando os meus pacientes.

Tutor: Como assim enganando, Paulo?

Paulo: É… Eu… Eu substituí a xilocaína por geléia de laranja.

Tutor: Entendo.

Paulo: E a anestesia por cepacol.

Tutor: Cepacol? Interessante. Nunca tinha ouvido.

Tiago: Eu usava água com corante mesmo.

Tutor: Tiago, vamos deixar o Paulo falar.

Paulo: Bom. Como eu ia dizendo, eu venho tratando os meus pacientes sem anestesia. Sem que eles saibam. Eu sei que é errado. Mas eu não consigo parar.

Tutor: Muito bem, Paulo. O primeiro passo é reconhecer.

Paulo: Desde que eu comecei a… fazer essas coisas, muitos pacientes deixaram de freqüentar o meu consultório. (Ele vai se emocionando paulatinamente). Eu to ficando sem dinheiro pra pagar as contas. Minha mulher está querendo me deixar. Tem dois pacientes que estão me processando. Eu já não tenho mais amigos. A minha vida está um inferno. Eu to muito deprimido (Um leve choro). E eu sei que é simples. É só parar com isso e tudo volta ao normal. Mas toda vez que eu vou anestesiar um paciente… Eu tento, mas eu não consigo. É mais forte do que eu. (Chora)

Tutor: Nós entendemos, Paulo. Fica calmo. A gente está aqui pra te ajudar. Eu acho que pra primeira vez você foi muito bem. Agora, como é de praxe aqui nas nossas reuniões, alguns membros vão contar suas histórias pra você entender que não está sozinho. Quem quer falar?

Lenita: Pode ser eu.

Tutor: Muito bem, Lenita.

Lenita: Bom. Eu sou paciente. Quer dizer, fui, né? E eu desenvolvi uma obsessão pelo meu dentista. Isso me causou muitos problemas. Começou com coisas pequenas como chupar cabos de escovas de dente e uns contratempos no trabalho.

Paulo: O que é que você faz?

Lenita: Eu era balconista de uma farmácia. E toda vez que alguém entrava pedindo um enxaguante bucal ou um limpadorzinho de língua que fosse, eu… Bem, eu tinha problemas. Eu decidi vir pra cá depois que eu fui presa por espancar uma senhora de setenta e quatro anos porque ela demorou mais de dez segundos falando a palavra… falando a palavra…

Tutor: Vamos lá, Lenita, você consegue.

Lenita (depois de respirar fundo): “Profilaxia.”

Paulo: Qual o problema com profilaxia?

Tiago: A Lenita não podia ouvir a palavra profilaxia que ela virava uma louca epilética.

Lenita: Pelo menos eu não transformei a boca da minha esposa num cu ampliado.

Paulo: Cu ampliado?

Lenita: O Tiago arrancou todos os dentes da mulher dele na noite de núpcias.

Tiago: A Vilma pediu!

François: Eu te entendo, mon ami.

Lenita: Se ela pedisse pra você arrancar os seus você arrancaria?

Tiago: Me deixa em paz.

François: Malu, Malu

Tutor: Vamos parar.

Lenita: Coitada da Vilma.

François: Ah, Malu.

Tutor: Controle-se François.

François: Desculpe. Mas me lembrei da boca de Malu depois da cirurgia.

Paulo: Cirurgia?

Tutor: O François fez uma livre associação entre amor e dentes e matou sua ex-mulher de tétano depois de arrancar seus caninos e incisivos com um alicate enferrujado em Paris. Mas ele já cumpriu pena numa penitenciária em Rouen, se mudou para o Brasil há dez anos e está praticamente recuperado.

Sônia: Só se for da virose que ele pegou semana passada, né?

Tutor: Sônia, por favor.

Sônia: Ele está de olho no meu molar faz séculos. Se eu dormir de boca aberta na sala do café tenho certeza que acordo com um dente a menos.

Tutor: Quer parar com essa implicância.

Paulo: Você também é dentista?

Sônia: Não. Sou paciente. Eu arranquei meus próprios dentes para salvar meu casamento.

Paulo: O quê?

Sônia: Meu ex-marido era dentista.

Paulo: Ah, entendi.

Sônia: Eu resolvi pedir o divórcio depois que ele se recusou a fazer meu tratamento de canal.

Tutor: Sônia, você não precisava de um tratamento de canal.

Sônia: Mas naquela época eu precisara fazer sexo. E o tratamento de canal era meio caminho andado. Os dois sozinhos numa sala, eu deitada e ele semi-nu.

Paulo: Semi-nu?

Sônia: O consultório do Rodolfo era muito quente. Ele atendia sem camisa.

Paulo: Sei…

Tiago: Pro-fi-la-xi-a!

Lenita: Se você continuar eu vou dar uma dentadura pra Vilma.

Tutor: Tiago, você está se excedendo.

Cecílio (para Paulo): Você se incomoda de abrir a boca?

Tutor: Cecílio, por favor.

Cecílio: É que eu to vendo um brilhinho no canto esquerdo da boca dele.

Paulo: Brilho?

Tutor: Cecílio.

Cecílio: Eu juro que eu to!

Tutor: Você tem que se controlar.

Cecílio: Mas e se for um diamante!

Paulo: Um quê?

Tutor: O Cecílio encontrou um diamante cravado na gengiva de um dos pacientes. Desde então ele fez 474 extrações desnecessárias em busca de pedras preciosas.

Paulo: Nossa!

Tutor: Bom, nós já estamos falamos bastante. Alguém mais quer falar?

Uma mulher levanta a mão.

Tutor: Pode falar, Neide.

Ela se levanta. Imediatamente um rapazinho franzino que estava lendo uma edição antiga da Moda Moldes se levanta e se coloca do lado dela. Neide fala em LIBRAS (língua dos surdo-mudos)

Rapaz Franzino (ao lado de Neide que sinaliza com as mãos. Ele vai falando fazendo pequenas pausas esperando que ela sinalize o restante da frase): Eu gostaria de dizer…(pausa) ao Paulo (pausa) que ele não se assuste com a… O quê? O quê que é isso, Dona Neide? (pausa) O quê? (pausa) Eu não conheço esse sinal. (ela pega papel caneta e escreve) Loquacidade? O quê que é loquacidade? Tá, eu vou traduzir. Eu gostaria de dizer ao Paulo que ele não se assuste com a loquacidade de nosso grupo. Ele é muito bem-vindo e eu estou certa de que vai conseguir se recuperar logo, logo.

Tutor: Obrigado, Neide.

Paulo: Obrigado. (Baixo para o Tutor): Ela é surda?

Tutor (baixo): Não. Ela implorou para que seu dentista arrancasse a língua e os dentes por achar que falava e comia demais. Hoje em dia ela se arrependeu. Usa dentadura e viaja todos os meses para Nova York onde é paciente voluntária de uma clínica que desenvolve línguas biônicas.

Paulo: Línguas biônicas?

Tutor: Uma prótese lingual feita de fibra óptica e silicone. Mas nenhuma se adaptou ao corpo da Neide. Aparentemente, assim que a prótese é colocada ela fala tantas palavras por minuto que a língua biônica não suporta e entra em pane.

Paulo: Que triste.

Tutor (para todos): Bom. Com isso nós encerramos nossa sessão de hoje.

Lenita: Não. Ainda falta ele. Ele também é novo.

Lenita aponta para um rapaz de uns trinta anos que está sentado, assustadíssimo, num canto da sala.

Tutor: Ah. Eu não tinha te visto. Por favor. Levante-se meu rapaz. Levante-se e se apresente.

Rapaz: Bom, é… Bem. O… O meu nome é… O meu nome é Renato.

Todos: Oi Renato.

Rapaz: Eu tenho 28 anos e nesta semana o meu ciso resolveu aparecer.

(Longa pausa)

Tutor: Prossiga, Renato. Eu sei que é difícil, mas tente falar.

Rapaz: Não. É… Na verdade é só isso.

Tutor: Como assim?

Rapaz: É só isso. Nessa semana o meu ciso resolveu aparecer. Aí eu… Aí… Aí eu entrei aqui pensando que era um consultório de dentista.

(Longuíssima pausa. Todos de olhos arregalados para Renato)

Tutor (começando a suar de nervoso): Deixa eu ver se eu entendi. Você entrou na nossa reunião e assistiu a todos esses depoimentos pensando que estava num consultório de dentista?

Rapaz (totalmente sem jeito): É… É que depois que eu vi que não era, já era tarde demais. Eu fiquei com vergonha de levantar no meio e sair. Daí eu resolvi ficar aqui até acabar.

Tutor (levemente transtornado): Você ficou (pausa) com vergonha?

(pausa)

Rapaz: É.

Tutor (transtornado): Você não leu a placa? “Viciados em dores dentárias e bucais anônimos”?

Rapaz: Então. Eu acho que eu só li o “dores dentárias”. Daí eu entrei.

O tutor começa a suar bastante. Ele tenta conter a raiva. Trinca os dentes.

Tutor (olhando fixamente para o rapaz com ódio): Alguém tem um alicate?

Todos: Eu!

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O pós-guerra

Rio de Janeiro, ano de 2098. A cena se passa no período depois da guerra entre os traficantes de morros e o poder público.

Dois homens numa mesa numa calçada. Duas taças de vinho e algumas garrafas. Eles conversam.

1: O chileno é muito bom.

2: É suave né?

1: Muito.

2: Não deixa muito resquício.

1: Resquício?

2: Quer dizer, resíduo.

1: É por isso que é suave.

2: Exatamente.

1: E é exceção entre os sul-americanos.

2: Ah, sem dúvida, sem dúvida alguma.

1: O brasileiro, por exemplo, tende a ser sempre bem encorpado, forte.

2: É. Mas em compensação não é tão rascante quanto o argentino.

1: Ah, não. O argentino é o mais.

2: Poxa é uma pena a gente não ter nenhum Europeu hoje. (cheira uma carreira de cocaína).

1: Esse é qual?

2: Boliviano.

1: Hmmmm. Acho que vou dar um tempo. Boliviano me sobe à cabeça muito rápido. Mas sem
dúvida é o melhor em sabor.

2: Você acha? Prefiro o venezuelano.

1: Não… O pó venezuelano é muito fraco.

2: Mas em compensação tem sabor.

1: É, mas o boliviano pra mim reúne todas as qualidades dos sul-americanos. Ele é encorpado como o brasileiro, rascante como o argentino e não deixa resíduos como o chileno…

2: É verdade.

1: E tem sabor.

2: Acho que você tem razão, sabia?

1: To dizendo.

2: Experimenta esse da Califórnia.

1: Da Califórnia não.

2: Ah, pelo amor de Deus. Você não é daqueles que tem preconceito com cocaína da Califórnia, né? Por favor.

1: (cheira) Nada demais.

2: Preconceito.

1: Da próxima vez a gente tem que comprar um Europeu. Não precisa nem ser francês, mas um italiano já levanta o nível, né?

2: Ta certo. Ih rapaz, olha a polícia!

1: Ai meu Deus. Esconde, esconde, esconde!

(Eles escondem as garrafas de vinho)

2: Tudo bem seu guarda.

Guarda: Oba.

2: Vai um tequinho, aí?

Guarda: Não, obrigado. To de serviço, meus amigos.

( um deles esbarra na garrafa)

Guarda: Que barulho foi esse?

2: Não sei não, seu guarda.

Guarda: Vocês por acaso não estão consumindo nenhuma droga ilícita, não né?

2: Claro que não seu guarda. Estamos só dando nosso tequinho aqui.

1: Por favor, seu guarda. Nós somos apreciadores profissionais de pó. Não vamos estragar nossa degustação com nenhum entorpecente que vá interferir nos sabores e efeitos da cocaína.

2: Exatamente.

Guarda: Olha aqui, eu não quero problema não hein. Seu eu souber que vocês estão consumindo qualquer tipo de bebida alcoólica, uma cervejinha que seja, vai todo mundo em cana.

1: Por favor.

(guarda sai)

1: Que absurdo.

2: Será que um dia a gente vai poder tomar um vinhozinho em paz?

1: Difícil, meu amigo. Difícil.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

PLAY - confiram a primeira cena da peça Play, que volta com tudo amanha em Curitiba/PR

Personagens:
Ana (Daniela Galli)
Carla (Maria Maya)
César (Rrom Cordeiro - só em Curitiba)
Sérgio (Sérgio Marone)

Cena 1 – Ana e Sérgio

Ana sentada respondendo a perguntas de Sérgio em off. A cena deve parecer várias coisas. No começo, Ana é uma atriz falando para o público. Depois que entra a voz de Sérgio, pode parecer que Ana está na análise. Mas essa cena será repetida. Ela é na verdade a gravação do videoteipe de Ana no fim da peça. Lento.

Ana: Eu quero.
(longo silêncio)
Ana: É estranho. Meio esquisito. Sentar e começar a falar. Do nada. Ficar aqui olhando. Sendo olhada. É uma situação.
(Silêncio)
Sérgio: Mas como é que você ta se sentindo?
Ana: Bem.
Sérgio: Confortável?
Ana: Como assim?
Sérgio: Ta se sentindo à vontade?
Ana: To. (tempo) Na medida do possível.
Sérgio: Você não precisa falar nada se você não quiser.
Ana: Não. Eu quero. Eu vim aqui pra isso. Eu só não sei por onde começar. (pausa) Isso acontece muito? (tempo) Entendi.
(silêncio)
Ana: Você sempre faz isso?
Sérgio: Isso o quê?
Ana: Fica aí parado? Esperando as pessoas começarem? É assim que funciona?
(silêncio)
Ana: Você ta fazendo agora não ta?
Barulho qualquer (pode ser do microfone)
Ana: Engraçado. (tempo) Eu sei o que dizer. Eu sinto o que dizer. Mas quando chega a hora de falar. (silêncio) É como se qualquer coisa que eu dissesse não fosse capaz. (tempo) Aqui dentro é de verdade. Mas quando vira fala...
Sérgio: É por isso que eu falo pouco.
(silêncio)
Sérgio: Tenta diminuir o tempo.
Ana: O tempo?
Sérgio: Pensamento e fala.
Ana: Associação livre?
Sérgio: Se você quiser chamar assim.
(silêncio)
Ana: Ar. (tempo) As pessoas acham que é ar. (tempo) Tratam como se fosse ar. Dão uma importância. Um peso. Um peso tão grande. E é menor. É menor que ar. E sufoca. (pausa) Quando eu era pequena eu me lembro que tinha uma azaléia enorme na frente da minha casa. Era uma azaléia linda. Eu dizia que ela era a minha azaléia. Eu subia nela. Eu ficava assustada com o ar. Ficava assustada quando pensava que o mesmo ar que entrava em mim, entrava também nessa azaléia. Ou no meu porquinho da índia. Eu comecei a passar mal. Eu passava com tanto ar. Eu ficava pensando que era tanto ar, mas tanto ar que eu queria poder viver o suficiente pra poder respirar cada pedacinho dele. Cada pedacinho de ar. (tempo) É por isso que eu não aceito. Eu não aceito essa importância que dão. Como é que se pode dar importância pra uma coisa dessa forma. Como é que se pode dar importância pra uma coisa sendo que existe todo esse ar. (Pausa. Congela e começa a rir se dando conta do que está falando) Ai, desculpa. Desculpa. Eu não te falei? Da minha dificuldade? Eu começo pensando num assunto e termino falando de outro. (tempo) E eu não consigo parar. Eu vou falando, falando. (pára bruscamente), (silêncio), (outro tom): Você sabe qual o presente que eu mais gostei de receber na minha vida? Foi uma lembrança que uma amiga minha trouxe de uma viagem que ela fez à França. Era uma latinha. Tipo essas latas de sardinha? Era isso. Uma latinha. Só que vazia. E na tampa estava escrito: ar de Paris. Quando eu olhei praquilo eu achei lindo. Porque eu pensei que se eu abrisse a lata...

Vídeo 1 – Ficção
Olha, por incrível que pareça foi na semana passada. Eu posso te dizer uma coisa? Eu não gostava. Eu não gostava de sexo. Porque eu não sabia. Eu achava que era aquilo que eu fazia com o meu marido. E ele, que Deus o tenha, não... Não era o que é mesmo, sabe? Eu perdi ele muito cedo. Mas quando eu fiz cinqüenta anos. Eu nunca me esqueço. Essa idade pra mim foi... Porque quando eu fiz cinqüenta anos, foi quando eu fiz sexo de verdade pela primeira vez. Foi quando eu passei a gostar da coisa entendeu?

Cena 2

Agora é só vendo a peça pra saber. Quem já garantiu seu ingresso, let's PLAY. E quem nao comprou, ainda dá tempo. COMPRE JÁ O SEU



PLAY: sábado(05/02) e domingo(06/02), respectivamente às 21h e às 19h. Teatro Regina Vougue (Av: Sete de Setembro, nº: 2.775, loja 2.004). De R$ 20,00 a R$ 40,00.