Voz do locutor: A apresentadora infantil porto-riquenha Lila foi encontrada morta na manhã desta sexta-feira no rancho temático de Tomorrowland, a duzentos quilômetros da cidade de Los Angeles. O corpo de Lila foi achado por uma empregada dentro de sua piscina de barbies. Segundo as primeiras informações, Lila estava sem o braço direito e a perna esquerda e teria sangrado até a morte. Os primeiros relatos dão conta de que a própria apresentadora teria cortado os seus membros com uma serra elétrica e tinha a intenção de substituí-los por metralhadoras plásticas.
MULHER ESTÁ LIMPANDO UM PEIXE NERVOSA. O HOMEM CHEGA POR TRÁS E A ABRAÇA.
Homem: Oi, meu/
ELA DÁ UM SOBRESSALTO E APONTA NATURALMENTE A FACA PARA ELE.
Mulher: Onde é que você tava?
Homem: No trabalho.
Mulher: Eu fiquei te esperando a tarde inteira.
Homem: Eu tava no trabalho.
Mulher: Você disse que hoje ia faltar.
Homem: Eu não consegui dispensa.
Mulher: Você disse que hoje ia faltar.
Homem: Você tá bem?
Mulher: Eu to um pouco nervosa.
Homem: Eu to percebendo.
Mulher: Eu não to bem.
Homem: O que é que você tem?
Mulher: Eu to me sentindo sufocada.
Homem: Eu to percebendo.
Mulher: Eu não sei o que fazer.
Homem: Fica calma.
Mulher: Eu preciso me acalmar.
Homem: Fica.
Mulher: Eu to precisando.
Homem: Eu to aqui.
Mulher: Esses últimos dias eu não tenho sido.
Homem: Tá tudo bem.
Mulher: E eu não sei como é que eu faço.
Homem: Eu vou te ajudar.
Mulher: Me ajuda?
Homem: Fica tranquila.
Mulher: A gente tá precisando.
Homem: Eu também acho.
Mulher: Mudar as coisas.
Homem: Mudar.
Mulher: Alguma saída.
Homem: Isso.
Mulher: Se renovar, na verdade.
Homem: Isso!
Mulher: Mudar, mudar e renovar.
Homem: Meu amor.
Mulher: O que é que você acha de sinagoga?
Homem: Hein?
Mulher: Frequentar umas sinagogas. Deve ter velório em sinagoga.
Homem: Eu não to te entendendo.
Mulher: Mãe judia chora grave.
Homem: O quê?
Mulher: Mais chance de ser contaminado pelo choro.
Homem: Eu não acredito.
Mulher: Olha isso.
Homem: O quê que é isso?
Mulher: Credencial de acesso ao IML.
Homem: Hã?
Mulher: Uma amiga minha do hospital conseguiu.
Homem: IML?
Mulher: Eu sei que não tem velório mas eu pensei que talvez faça a gente sentir.
Homem: Do que é que você tá falando?
Mulher: O corpo vai tar ali na nossa frente.
Homem: No IML.
Mulher: E sem maquiagem.
Homem: Na nossa frente.
Mulher: Frio e cru.
Homem: Do que é que você tá falando?
Mulher: Mais vivo do que nunca.
Homem: Eu não vou ao IML.
Mulher: A gente precisa de mais.
Homem: De mais nada.
Mulher: Precisa.
Homem: A gente não precisa de mais nada.
Mulher: Os enterros.
Homem: Para com isso.
Mulher: Não são suficientes.
Homem: Chega.
Mulher: E eu quero mais.
Homem: Tenta se ouvir.
Mulher: Você tem que me ouvir.
Homem: Eu quero parar.
SILÊNCIO
Mulher: O quê?
Homem: Eu quero parar de ir aos enterros.
Mulher: Você não pode fazer isso.
Homem: Você tá doente.
Mulher: A sua blusa tá suja.
Homem: Você precisa parar.
Mulher: Eu preciso lavar.
Homem: Me escuta.
Mulher: Pro enterro de amanhã.
Homem: Não vai ter enterro.
Mulher: Você pode tirar pra eu lavar?
Homem: Você vai ter que parar.
Mulher: Me dá a sua roupa.
Homem: O médico.
Mulher: Me dá a sua roupa.
Homem: Você precisa ir ao médico.
Mulher: Eu não vou parar.
Homem: Você precisa ir ao médico.
ELA COMEÇA A TIRAR A ROUPA DELE VIOLENTAMENTE. AOS POUCOS A VIOLÊNCIA VAI VIRANDO SEXO.
Mulher: Me dá sua camisa.
Homem: Alguma hora não vai.
Mulher: A calça também.
Homem: O choro grave.
Mulher: Quase não tem mais roupa preta.
Homem: Você não vai conseguir o choro grave.
Mulher: Precisa comprar.
Homem: Vai morrer tentando.
Mulher: Tira essa roupa.
Homem: Tenta me ouvir.
Mulher: Eu quero.
Homem: Você não pode.
Mulher: Me dá a sua calça .
Homem: Você vai parar.
Mulher: Agora.
Homem: O enterro já não é.
Mulher: Me dá agora!
Homem: E não vai ser mais.
Mulher: Tira!
Homem: Para!
Mulher: Tudo.
Homem: Cala a boca!
SILÊNCIO.
Mulher: O que?
Homem: Cala boca e me escuta.
Mulher: O que é que/
Homem: Me escuta, me escuta e me ouve. Acabou. A história dos enterros. Acabou.
SILÊNCIO
Mulher: E a gente?
Homem: A gente continua. Mas eu nunca mais piso num cemitério. Só morto.
Mulher: A gente não continua.
Homem: Se você quiser, a gente continua.
Mulher: Não é mais a mesma coisa.
Homem: Não é. Mas a gente faz outra.
Mulher: Qual é a graça?
Homem: O quê?
Mulher: Essa vida. Qual é a graça?
Homem: A graça é tentar.
Mulher: Eu não quero mais assim. E isso não é minha loucura. Isso não é minha doença. Você sabe. Isso não é minha doença. Quando a gente tá nos enterros as coisas são. A gente sente e as coisas são.
Homem: Mas aqui fora elas também podem ser.
Mulher: É muito difícil.
Homem: Mas é possível.
Mulher: É muita coisa.
Homem: O quê?
Mulher: É muita coisa. É muita gente. É muito aparelho. É muita ligação. É muita letra. É muita música. É muita imagem. É muito rápido. O tempo todo. (pausa) É tudo muito o tempo todo. E na hora dos enterros. Quando a gente chora e sente. Parece que tudo para. E a gente só é. Não é pouco, nem muito. Nem gente, nem aparelho. Nem letra, nem música. A gente só é.
Homem: Mas não dá pra só ser. Tem que ser e não ser. No meio de tudo. Essa é que é a questão. E é isso que eu quero.
ELA ENTREGA UM ENVELOPE PARA ELE.
Homem: O quê que é isso?
Mulher: Eu fui ao médico.
Homem: Isso é um exame?
Mulher: Abre e vê.
Homem: Mas que exame é esse?
Mulher: Abre e vê.
O HOMEM ABRE O ENVELOPE E LÊ. NÃO DENUNCIA NO ROSTO O QUE É.
Homem: É sério isso?
Mulher: É um exame.
Homem: Quanto tempo?
Mulher: O quê?
Homem: Semanas, meses? Te deram algum tempo?
Mulher: Três meses.
SILÊNCIO.
Mulher: Você não vai falar nada?
Homem: Eu não sei como reagir. Eu não sei o que te falar. Eu não sei mais o que sentir.
Mulher: Me deixa te amar?
Homem: Eu to aqui.
Mulher: Mas de verdade. Do jeito mais forte.
Homem: O quê?
Mulher: Quando eu vi aquela mãe chorando pelo filho no caixão. Aquele amor que ela tinha por ele. Eu queria poder ter esse amor por você. Esse amor puro. Esse amor ideal.
Homem: O que é que você tá me pedindo?
Mulher: O choro grave.
Homem: O quê?
Mulher: Pra quê continuar, Rodrigo? Pra quê continuar com esse seu teatro?
Homem: Teatro
Mulher: É teatro. É tudo teatro.
Homem: Para.
Mulher: A realidade não cabe mais na realidade.
Homem: Por favor.
Mulher: Não tem por quê continuar.
Homem: Não.
Mulher: Vai ao máximo.
Homem: Por favor.
Mulher: Ao máximo na vida.
Homem: Eu não.
Mulher: Você não quer o melhor?
Homem: Hein?
Mulher: Você não quer o mais alto?
Homem: ...
Mulher: Você não quer o todo?
Homem: ...
Mulher: Você pode ter.
Homem: ...
Mulher: Você pode ser.
Homem: ...
Mulher: E vai ser lindo.
Homem: Para.
Mulher: Poder sentir.
Homem: Não.
Mulher: E ser perfeito.
Homem: Eu não.
Mulher: Só eu e você. Pra sempre. O obituário ideal.
HOMEM SE LEVANTA.
Mulher: O que é que você vai fazer?
SILÊNCIO
O HOMEM SAI. B.O.
Entra a primeira música (THE SMITHS). Entra uma projeção no fundo do cenário. São imagens das pessoas da platéia gravadas antes da peça começar. Imagens do público. As pessoas estão felizes, olhando para a câmera e sorrindo. Esta série de imagens deve durar mais ou menos 1 min. De repente a música para.
Entra Maria. Ela está na mesma posição que na primeira cena. Só que desta vez ela não segura um gravador na mão. Ela abraça a própria barriga. Está grávida. Ela começa a chorar como na primeira cena. E tem o mesmo crescendo. Só que agora é de verdade. O choro grave é de verdade.
As luzes vão baixando. E projeta-se então a última imagem. É o teatro vazio. A plateia onde o público está sentado, só que vazia. Uma pan para o palco revela Maria e Rodrigo por ali. São imagens gravadas antes imediatamente antes da peça começar. Rodrigo e Maria estão no palco se preparando para começar a peça.
No vídeo (diálogo real):
Maria: Merda!
Rodrigo: Merda! Pode mandar abrir? Vamo começar, gente!
A música volta do ponto onde parou. B.O. FIM.