quinta-feira, 8 de março de 2012

OBITUÁRIO IDEAL – Cena 7

296197_2527808071580_1144789244_3120344_226539581_n  Voz do locutor: A apresentadora infantil porto-riquenha Lila foi encontrada morta na manhã desta sexta-feira no rancho temático de Tomorrowland, a duzentos quilômetros da cidade de Los Angeles. O corpo de Lila foi achado por uma empregada dentro de sua piscina de barbies. Segundo as primeiras informações, Lila estava sem o braço direito e a perna esquerda e teria sangrado até a morte. Os primeiros relatos dão conta de que a própria apresentadora teria cortado os seus membros com uma serra elétrica e tinha a intenção de substituí-los por metralhadoras plásticas.

MULHER ESTÁ LIMPANDO UM PEIXE NERVOSA. O HOMEM CHEGA POR TRÁS E A ABRAÇA.

Homem: Oi, meu/

ELA DÁ UM SOBRESSALTO E APONTA NATURALMENTE A FACA PARA ELE.

Mulher: Onde é que você tava?

Homem: No trabalho.

Mulher: Eu fiquei te esperando a tarde inteira.

Homem: Eu tava no trabalho.

Mulher: Você disse que hoje ia faltar.

Homem: Eu não consegui dispensa.

Mulher: Você disse que hoje ia faltar.

Homem: Você tá bem?

Mulher: Eu to um pouco nervosa.

Homem: Eu to percebendo.

Mulher: Eu não to bem.

Homem: O que é que você tem?

Mulher: Eu to me sentindo sufocada.

Homem: Eu to percebendo.

Mulher: Eu não sei o que fazer.

Homem: Fica calma.

Mulher: Eu preciso me acalmar.

Homem: Fica.

Mulher: Eu to precisando.

Homem: Eu to aqui.

Mulher: Esses últimos dias eu não tenho sido.

Homem: Tá tudo bem.

Mulher: E eu não sei como é que eu faço.

Homem: Eu vou te ajudar.

Mulher: Me ajuda?

Homem: Fica tranquila.

Mulher: A gente tá precisando.

Homem: Eu também acho.

Mulher: Mudar as coisas.

Homem: Mudar.

Mulher: Alguma saída.

Homem: Isso.

Mulher: Se renovar, na verdade.

Homem: Isso!

Mulher: Mudar, mudar e renovar.

Homem: Meu amor.

Mulher: O que é que você acha de sinagoga?

Homem: Hein?

Mulher: Frequentar umas sinagogas. Deve ter velório em sinagoga.

Homem: Eu não to te entendendo.

Mulher: Mãe judia chora grave.

Homem: O quê?

Mulher: Mais chance de ser contaminado pelo choro.

Homem: Eu não acredito.

Mulher: Olha isso.

Homem: O quê que é isso?

Mulher: Credencial de acesso ao IML.

Homem: Hã?

Mulher: Uma amiga minha do hospital conseguiu.

Homem: IML?

Mulher: Eu sei que não tem velório mas eu pensei que talvez faça a gente sentir.

Homem: Do que é que você tá falando?

Mulher: O corpo vai tar ali na nossa frente.

Homem: No IML.

Mulher: E sem maquiagem.

Homem: Na nossa frente.

Mulher: Frio e cru.

Homem: Do que é que você tá falando?

Mulher: Mais vivo do que nunca.

Homem: Eu não vou ao IML.

Mulher: A gente precisa de mais.

Homem: De mais nada.

Mulher: Precisa.

Homem: A gente não precisa de mais nada.

Mulher: Os enterros.

Homem: Para com isso.

Mulher: Não são suficientes.

Homem: Chega.

Mulher: E eu quero mais.

Homem: Tenta se ouvir.

Mulher: Você tem que me ouvir.

Homem: Eu quero parar.

SILÊNCIO

Mulher: O quê?

Homem: Eu quero parar de ir aos enterros.

Mulher: Você não pode fazer isso.

Homem: Você tá doente.

Mulher: A sua blusa tá suja.

Homem: Você precisa parar.

Mulher: Eu preciso lavar.

Homem: Me escuta.

Mulher: Pro enterro de amanhã.

Homem: Não vai ter enterro.

Mulher: Você pode tirar pra eu lavar?

Homem: Você vai ter que parar.

Mulher: Me dá a sua roupa.

Homem: O médico.

Mulher: Me dá a sua roupa.

Homem: Você precisa ir ao médico.

Mulher: Eu não vou parar.

Homem: Você precisa ir ao médico.

ELA COMEÇA A TIRAR A ROUPA DELE VIOLENTAMENTE. AOS POUCOS A VIOLÊNCIA VAI VIRANDO SEXO.

Mulher: Me dá sua camisa.

Homem: Alguma hora não vai.

Mulher: A calça também.

Homem: O choro grave.

Mulher: Quase não tem mais roupa preta.

Homem: Você não vai conseguir o choro grave.

Mulher: Precisa comprar.

Homem: Vai morrer tentando.

Mulher: Tira essa roupa.

Homem: Tenta me ouvir.

Mulher: Eu quero.

Homem: Você não pode.

Mulher: Me dá a sua calça .

Homem: Você vai parar.

Mulher: Agora.

Homem: O enterro já não é.

Mulher: Me dá agora!

Homem: E não vai ser mais.

Mulher: Tira!

Homem: Para!

Mulher: Tudo.

Homem: Cala a boca!

SILÊNCIO.

Mulher: O que?

Homem: Cala boca e me escuta.

Mulher: O que é que/

Homem: Me escuta, me escuta e me ouve. Acabou. A história dos enterros. Acabou.

SILÊNCIO

Mulher: E a gente?

Homem: A gente continua. Mas eu nunca mais piso num cemitério. Só morto.

Mulher: A gente não continua.

Homem: Se você quiser, a gente continua.

Mulher: Não é mais a mesma coisa.

Homem: Não é. Mas a gente faz outra.

Mulher: Qual é a graça?

Homem: O quê?

Mulher: Essa vida. Qual é a graça?

Homem: A graça é tentar.

Mulher: Eu não quero mais assim. E isso não é minha loucura. Isso não é minha doença. Você sabe. Isso não é minha doença. Quando a gente tá nos enterros as coisas são. A gente sente e as coisas são.

Homem: Mas aqui fora elas também podem ser.

Mulher: É muito difícil.

Homem: Mas é possível.

Mulher: É muita coisa.

Homem: O quê?

Mulher: É muita coisa. É muita gente. É muito aparelho. É muita ligação. É muita letra. É muita música. É muita imagem. É muito rápido. O tempo todo. (pausa) É tudo muito o tempo todo. E na hora dos enterros. Quando a gente chora e sente. Parece que tudo para. E a gente só é. Não é pouco, nem muito. Nem gente, nem aparelho. Nem letra, nem música. A gente só é.

Homem: Mas não dá pra só ser. Tem que ser e não ser. No meio de tudo. Essa é que é a questão. E é isso que eu quero.

ELA ENTREGA UM ENVELOPE PARA ELE.

Homem: O quê que é isso?

Mulher: Eu fui ao médico.

Homem: Isso é um exame?

Mulher: Abre e vê.

Homem: Mas que exame é esse?

Mulher: Abre e vê.

O HOMEM ABRE O ENVELOPE E LÊ. NÃO DENUNCIA NO ROSTO O QUE É.

Homem: É sério isso?

Mulher: É um exame.

Homem: Quanto tempo?

Mulher: O quê?

Homem: Semanas, meses? Te deram algum tempo?

Mulher: Três meses.

SILÊNCIO.

Mulher: Você não vai falar nada?

Homem: Eu não sei como reagir. Eu não sei o que te falar. Eu não sei mais o que sentir.

Mulher: Me deixa te amar?

Homem: Eu to aqui.

Mulher: Mas de verdade. Do jeito mais forte.

Homem: O quê?

Mulher: Quando eu vi aquela mãe chorando pelo filho no caixão. Aquele amor que ela tinha por ele. Eu queria poder ter esse amor por você. Esse amor puro. Esse amor ideal.

Homem: O que é que você tá me pedindo?

Mulher: O choro grave.

Homem: O quê?

Mulher: Pra quê continuar, Rodrigo? Pra quê continuar com esse seu teatro?

Homem: Teatro

Mulher: É teatro. É tudo teatro.

Homem: Para.

Mulher: A realidade não cabe mais na realidade.

Homem: Por favor.

Mulher: Não tem por quê continuar.

Homem: Não.

Mulher: Vai ao máximo.

Homem: Por favor.

Mulher: Ao máximo na vida.

Homem: Eu não.

Mulher: Você não quer o melhor?

Homem: Hein?

Mulher: Você não quer o mais alto?

Homem: ...

Mulher: Você não quer o todo?

Homem: ...

Mulher: Você pode ter.

Homem: ...

Mulher: Você pode ser.

Homem: ...

Mulher: E vai ser lindo.

Homem: Para.

Mulher: Poder sentir.

Homem: Não.

Mulher: E ser perfeito.

Homem: Eu não.

Mulher: Só eu e você. Pra sempre. O obituário ideal.

HOMEM SE LEVANTA.

Mulher: O que é que você vai fazer?

SILÊNCIO

O HOMEM SAI. B.O.

Entra a primeira música (THE SMITHS). Entra uma projeção no fundo do cenário. São imagens das pessoas da platéia gravadas antes da peça começar. Imagens do público. As pessoas estão felizes, olhando para a câmera e sorrindo. Esta série de imagens deve durar mais ou menos 1 min. De repente a música para.

Entra Maria. Ela está na mesma posição que na primeira cena. Só que desta vez ela não segura um gravador na mão. Ela abraça a própria barriga. Está grávida. Ela começa a chorar como na primeira cena. E tem o mesmo crescendo. Só que agora é de verdade. O choro grave é de verdade.

As luzes vão baixando. E projeta-se então a última imagem. É o teatro vazio. A plateia onde o público está sentado, só que vazia. Uma pan para o palco revela Maria e Rodrigo por ali. São imagens gravadas antes imediatamente antes da peça começar. Rodrigo e Maria estão no palco se preparando para começar a peça.

No vídeo (diálogo real):

Maria: Merda!

Rodrigo: Merda! Pode mandar abrir? Vamo começar, gente!

A música volta do ponto onde parou. B.O. FIM.

quinta-feira, 1 de março de 2012

OBITUÁRIO IDEAL –Cena 6

IMG_2351_foto_paula_kossatz_press  Voz do locutor: Uma criança morreu hoje depois de ter sido arrastada por um carro em movimento por dois quarteirões, na cidade de Chernobyl, na Rússia. A menina de apenas sete anos ficou pendurada pelo cinto de segurança do lado de fora do veículo, que tinha sido roubado. Restos do corpo incluindo as pontas dos traços da perna esquerda foram achados no caminho. A polícia agora trabalha na captura dos bandidos com a ajuda da população para dar fim à tragédia de Chernobyl.

OS DOIS ENTRAM EM CENA COM AS MALAS.

Mulher: Esse foi o melhor enterro da minha vida.

Homem: Taí uma frase que eu achei que eu nunca fosse escutar.

Mulher: Eram muitos.

Homem: Tipos de choro?

Mulher: Mortos. Eram muitos mortos. Aquele bando de mãe chorando. Nunca imaginei que fosse tão forte.

Homem: Era muito forte.

Mulher: E em espanhol fica tudo ainda mais dramático!

Homem: Não tem mais nada nessa casa.

Mulher: Mi hijo, cariño, mi amor!

Homem: Absolutamente nada.

Mulher: Engraçado que mesmo sendo em espanhol eu entendi tudo.

Homem: A gente precisa fazer compra.

Mulher: É por um outro lugar, mas eu entendi.

Homem: Acho que não tem mais uma peça de carne.

Mulher: E senti também, que é o grande lance.

Homem: Vou ver se eu compro pra manhã.

Mulher: O cortejo foi um escândalo.

Homem: Picanha, de repente.

Mulher: Cada caixão mais lindo que o outro.

Homem: Ou maminha

Mulher: A mães choraram muito grave.

Homem: Talvez alcatra.

Mulher: Você conseguiu?

Homem: Acém.

Mulher: O quê?

Homem: Hã?

Mulher: Oi.

Homem: Hein?

Mulher: Eu perguntei se você conseguiu. O choro grave.

Homem: Acho que não.

Mulher: Eu também não. Mas mesmo assim eu brilhei.

Homem: No choro?

Mulher: Brilhei no choro. Foi tão forte, tão violento, tão real.

Homem: Você brilhou.

Mulher: Tirando as mães ninguém ali sofria mais que eu.

Homem: É, não sofria.

Mulher: Você acha mesmo?

Homem: Acho.

Mulher: De verdade?

Homem: Acho.

Mulher: Duvido.

Homem: Eu não reparei muito nas outras. Você sabe que eu só tenho olhos pro seu choro.

Mulher: Mentiroso.

Homem: Juro.

Mulher: Teve uma hora que eu bem vi você se emocionando com aquela ruiva de vestido cotelê.

Homem: Que bobagem.

Mulher: Admite. Eu não vou irritada.

Homem: Tá bom, eu me emocionei um pouquinho.

Mulher: Sabia.

Homem: Mas é que o choro dela era muito forte.

Mulher: Aquilo lá é profissional.

Homem: Será?

Mulher: Carpideira.

Homem: Eu nem reparei.

Mulher: Tava escrito na testa.

Homem: Pode ser.

Mulher: Eu reconheço a léguas.

Homem: Esquece essa ruiva de vestido cotelê.

PAUSA.

Mulher: (LEMBRANÇA DOCE) Meu amor.

Homem: O quê?

Mulher: Vozes.

Homem: Hein???

Mulher: A gente se esqueceu de gravar as vozes.

Homem: Pra medição.

Mulher: Dos nossos choros.

Homem: A gente se esqueceu de gravar as vozes pra medição dos nossos choros.

Mulher: Tão importante!

Homem: Não tem problema.

Mulher: Mas é muito.

Homem: A gente grava.

Mulher: Agora.

Homem: Pode ser.

Mulher: Cadê o gravador?

Homem: Na mala, eu acho.

HOMEM VAI PEGAR.

Mulher: Eu tirei uma fotos sensacionais.

Homem: É.

Mulher: Tem uma aqui pelo ângulo que parece que uma das mortas tá de olho aberto.

Homem: Que bom.

Mulher: Depois você me ajuda a descarregar.

Homem: Claro.

Mulher: Você tá tão bonito.

Homem: Hein?

Mulher: Seu corpo, mais forte. De repente eu volto a malhar.

Homem: O que é que você falou?

Mulher: Que eu tô pensando em voltar pra academia.

Homem: Não, antes. O que é que você falou antes.

Mulher: Do seu corpo.

Homem: Disso.

Mulher: O quê?

Homem: Antes disso.

Mulher: Eu falei que você tava bonito.

Homem: Você achou.

Mulher: Achei. (PAUSA) Muito bonito.

O HOMEM APERTA O GRAVADOR DE EMOÇÃO (CAFONA) E ENTRA O SOM DE UM CHORO GRAVE DESESPERADO.

Homem: É o de uma das mães.

Mulher: É lindo.

Homem: É forte.

Mulher: É lindo. Como é que faz pra sentir isso, meu Deus?

Homem: Maria/

Mulher: Vamo gravar as nossas vozes.

ELA PEGA O GRAVADOR E COMEÇA A VOLTAR.

Homem: O que é que você tá fazendo?

Mulher: Achando um ponto pra não gravar em cima dos choros.

Homem: Das mães.

Mulher: Dos nossos. A gente tem que comparar, né?

Homem: É. A gente tem.

ELA DÁ PLAY E OUVE SEU PRÓPRIO CHORO.

Mulher: Aqui tá bom.

Homem: Mas esse é o seu choro.

Mulher: Mas não é do enterro.

Homem: É de quando?

Mulher: De antes.

Homem: De outro enterro?

Mulher: Daqui de casa.

Homem: Você tava ensaiando?

Mulher: Pra não desperdiçar o momento.

Homem: O choro grave vem justamente do não preparo.

Mulher: Mas algum esforço tem que ter. A gente ainda não conhece os mortos.

Homem: É. A gente ainda (pausa) não conhece os mortos.

Mulher: Como é que vai ser?

Homem: Como assim?

Mulher: A medição dos choros.

Homem: Eu já te disse. Eu vou tirar a frequência normal da voz e comparar com os choros de acordo com a função de onda. Depois eu converto faço uma escala de medição de 1 a 10. Sendo um o choro mais grave e dez o mais agudo.

Mulher: Não pode ser o contrário?

Homem: O 1 mais agudo e o 10 sendo mais grave.

Mulher: É.

Homem: Pode. Por quê?

Mulher: Vou ser sua aluna nota dez.

Homem ri.

Mulher: Então o que é que eu tenho que fazer.

Homem: Vamo gravar.

Mulher: Eu falo o quê?

Homem: Você pode falar qualquer coisa, desde que seja neutro.

Mulher: Neutro?

Homem: Sem emoção.

Mulher: Entendi.

HOMEM APERTA O REC.

Mulher: Já tá gravando?

Homem: Já.

Mulher: Tá gravando?

Homem: Já!

Mulher: Ai, meu Deus.

Homem: O que foi?

Mulher: Eu fiquei meio surpresa.

Homem: Tem que ser sem emoção.

Mulher: Ai, mas eu não sei o que falar.

Homem: Fala qualquer coisa.

Mulher: Como assim qualquer coisa?

Homem: Qualquer coisa, só tem que ser neutro.

Mulher: Mas falar o quê?

Homem: Fala batatinha quando nasce.

Mulher: Mas eu não sei batatinha quando nasce.

Homem: Todo mundo sabe batatinha quando nasce.

Mulher: Ai, meu Deus.

Homem: Fala logo senão vai gravar em cima do enterro.

Mulher: Ai, que pressão. Peraí. Deixa eu ver se eu me lembro... Ai, como é que era? (PAUSA) Ih, tá ouvindo? Essa música que tá tocando é tão bonita que faz a gente querer ficar vivo. Mas vai chegar um tempo em que a gente vai ter ido embora. A gente vai ser esquecido. Os nossos rostos, as nossas vozes e tudo o que a gente fez vai ser esquecido. Mas o nosso sofrimento vai ser transformado em felicidade pra quem vier depois. E quando isso acontecer vão lembrar da gente com muito amor. É por isso que eu acredito que logo, logo a gente vai saber porque a gente vive. E o porquê de tanto sofrimento. A gente vai saber porquê. A gente vai saber porquê. (PAUSA) Foi sem emoção?

Homem: Foi. Sem emoção.

Mulher: Nossa, eu nem acredito que eu me lembrei disso tudo.

Homem: O quê que é?

Mulher: Era a fala de uma peça que eu fiz quando eu era mais nova.

Homem: Era teatro?

Mulher: Era teatro. (pausa) E agora?

Homem: Agora eu preciso passar as gravações pro computador. E fazer as contas.

Mulher: Pra medir a falta.

Homem: O quê?

Mulher: Pra medir o quanto falta. Pra chegar ao choro perfeito.

Homem: Isso. Pra medir isso.

Mulher: Eu vou descansar

Homem: Vai. Amanhã você tem que tar no hospital cedo. Eu dou aula. Recomeça a vida, né?

Mulher: É.

Homem: E você tem o médico.

Mulher: Eu sei.

Homem: Você vai.

Mulher: Eu vou.

OS DOIS SE LEVANTAM.

Mulher: Eu queria muito chorar grave. Eu queria sentir como é.

Homem: Uma hora você consegue.

ELA VAI SAINDO.

Homem: Eu te amo.

Mulher: O quê?

Homem: Eu te amo.

Mulher: O quê?

Homem: Eu vou comprar carne.

Mulher: Vê se não demora.

Homem: Pode deixar que eu não vou demorar.

ENTRA MÚSICA.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

OBITUÁRIO IDEAL –Cena 5

IMG_2353_foto_paula_kossatz_press  A TELEVISÃO SEMPRE LIGADA. MULHER TERMINANDO DE SE MAQUIAR. SE OLHANDO NO ESPELHINHO. PODE ESTAR FAZENDO CARAS DE CHORO. HOMEM ENTRA COM UMA MALA.

Mulher: Anda logo, senão a gente perde o voo.

Homem: Eu até agora não acredito que a gente tá indo pra Colômbia.

Mulher: Não era você que disse há pouco tempo que a gente tava precisando viajar?

Homem: Eu tinha pensando numa praia tranquila. Ou uma fazendinha.

Mulher: Lugar isolado morre pouca gente.

Homem: A idéia não era essa.

Mulher: Eu sei. Mas a gente tá indo a um enterro que é muito melhor.

Homem: É. Muito melhor.

Mulher: E não é um enterro qualquer. São jovens. Dez jovens.

Homem: São dez jovens.

Mulher: Será que vai ter criança?

Homem: Bem capaz.

Mulher: Ai, tomara.

Homem: Por quê?

Mulher: Vou chorar que nem uma louca.

Homem: Se tiver criança?

Mulher: Terninho, coroinha, caixãozinho.

Homem: Que loucura.

Mulher: Acho tão bonito aquele tom de azul.

Homem: Que tom?

Mulher: Do caixãozinho de criança. (pausa) Uma graça.

Homem: Eu vou terminar a nossa mala.

Mulher: Você viu a minha máquina?

Homem: Você vai levar a máquina de fotografia?

Mulher: A gente não tá indo viajar?

Homem: Mas pra ir a um enterro!

Mulher: As fotos vão ficar lindas!

Homem: Você remarcou o médico?

Mulher: Pra amanhã.

Homem: Mas a gente não vai ter voltado.

Mulher: Então vou ter que desmarcar

Homem: Eu não acredito nisso.

Mulher: Eu também não. Nunca uso máquina fotográfica e na hora que a gente precisa dela a diaba some.

Homem: Você sabe do que eu to falando.

Mulher: Do enterro?

Homem: Do médico.

Mulher: Eu vou remarcar.

Homem: É importante.

Mulher: Eu sei.

Homem: Dependendo do que ele falar da... do...

MULHER PARA DE PROCURAR E ENCARA O MARIDO.

Homem: Dependendo do que ele falar a gente pode voltar a tentar.

PAUSA

Mulher: É. Dependendo a gente pode.

ELES SE APROXIMAM.

Homem: Você tem certeza que você quer ir pra Colômbia atrás de um enterro? (Taí uma frase que eu achei que eu nunca fosse dizer).

Mulher: Eu tenho.

Homem: Pensa bem.

VOLTA A PROCURAR.

Mulher: Não tem o que pensar.

Homem: Eu acho que a gente podia rever essa história.

Mulher: Se a gente revir qualquer coisa a gente perde o vôo.

Homem: A gente pode remarcar a passagem.

Mulher: E perder um enterro desses? Nem morta! (sem trocadilho).

Homem: Me escuta.

Mulher: Vai falando.

Homem: Quando a gente foi ao enterro da minha vó...

SE ESBARRAM/ ELA SEDUZ.

Mulher: O que é que tem?

Homem: Quando a gente foi ao enterro da minha vó.

Mulher: Foi quando a gente percebeu.

Homem: Eu me lembro.

Mulher: E não foi?

Homem: Foi muito.

Mulher: E a gente tem conseguido.

Homem: A gente tem.

Mulher: Depois do enterro da sua vó.

Homem: Por isso que a gente decidiu.

Mulher: Os outros enterros.

Homem: Sentir.

Mulher: Então.

Homem: É que eu acho que é possível. Eu acho que a gente consegue. Sem precisar dos enterros.

Mulher: A gente não consegue.

Homem: A gente consegue.

Mulher: Não é mais a mesma coisa.

Homem: Pode voltar a ser.

Mulher: Não pode. Depois do que eu tenho sentido nos enterros. Não faz mais sentido, entende? Sem os enterros não faz mais sentido. Fica muito comum, muito pequeno. E pouco real.

Homem: Como pouco real?

Mulher: O que eu tenho sentido nos enterros... É uma coisa que eu nunca senti antes na minha vida. Um sentimento que não tem nem nome. Como se fosse uma sensação de tudo. De tudo que eu já passei e de tudo que eu vou passar. E eu não sei se é bom ou se é ruim. Se é alegre ou se triste. Se é frio ou se é vermelho. Eu só sei que é de verdade. É tão de verdade, que parece que tudo o que eu sinto fora de lá não é mais o suficiente. Não é mais real. Nem você.

Homem: Eu?

Mulher: É que nos enterros. Quando eu olho pra você. Parece que o castanho do teu olho e o mais castanho que um dia ele vai ser.

ELE MEXE NO CABELO DELA.

Mulher: Quando você tira o cabelo do meu rosto, parece que a sua mão passa pelo lugar exato que uma mão precisa passar pra tirar o cabelo de um rosto.

ELE A ABRAÇA.

Mulher: E quando você usa os seus braços pra me fazer caber no meio do teu corpo, eu entendo o significado real da palavra abraço.

Homem: Eu to te abraçando agora. E é de verdade.

Mulher: Mas não parece. Quando eu não to sentindo o que eu sinto lá... O que eu sinto é... é o que não é. É tudo que não é real.

Homem: Deixou de ser teatro?

Mulher: Virou verdade. O teatro agora é aqui fora.

ELA APONTA PARA A TELEVISÃO, COMO SE APONTASSE PARA O PÚBLICO. OUVIMOS APLAUSOS DE UM PROGRAMA DE AUDITÓRIO. O HOMEM VIRA O ROSTO DELA. ELES VÃO SE BEIJAR. TOCA O TELEFONE.

Mulher: Alô. (tempo). É? (tempo). Que ótimo (tempo). Onde? (tempo). Ta. (tempo). No azul. No Amarelo, então? Setor amarelo. Tá. (tempo). Tchau.

Homem: Quem era?

Mulher: Minha irmã teve filho.

Homem: E agora?

Mulher: A gente manda flores do aeroporto.

Homem: A gente não vai?

Mulher: Ao enterro? *Claro que sim. (juntos)

Homem: *Não, à maternidade?

Mulher: Quê?

Homem: Ao enterro?

Mulher: É. Ao enterro. Bogotá, Colômbia. Foi.

Homem: E à maternidade?

Mulher: Depois de amanhã.

Homem: Mas ela ta na maternidade?

Mulher: Ta. Na maternidade... * do hospital onde eu trabalho.

Homem: *no seu hospital? (juntos)

Homem: E a gente não vai visitar.

Mulher: Acabei de falar, depois de amanhã. Vamos senão a gente perde o vôo.

Homem: Meu amor.

Mulher: Desisti de procurar a minha máquina.

Homem: (PARA SI) Dez descidas, dez abraços, dez descidas.

Mulher: O que é que você tá falando?

Homem: Nada.

Mulher: O enterro vai ser lindo.

Homem: Vai. Vai ser lindo.

Mulher: Será que hoje a gente consegue?

Homem: Consegue o quê?

Mulher: O choro grave?

Homem: Vamo tentar.

Mulher: Mas não tem como.

Homem: Não tem.

Mulher: A gente não conhece nenhuma vítima.

Homem: Quem sabe você não consegue?

Mulher: Só se o professor de matemática se matasse.

Homem: Oi?

Mulher: Do meu obituário ideal.

SILÊNCIO. PEGA NA BOLSA.

Mulher: Achei minha máquina. Vamos embora?

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

OBITUÁRIO IDEAL – Cena 4

IMG_2246_foto_paula_kossatz_press (1)  Voz do locutor: Trinta pessoas morreram na explosão de um carro-bomba na manhã desta Sexta-Feira, em Islamabad, no Paquistão. O atentado aconteceu perto de uma mansão de luxo na área central da cidade. Uma criança de dez anos que estava perto do local da explosão foi atingida na cabeça por um braço esquerdo de uma vítima que voou com os destroços e teve traumatismo craniano.

Homem e mulher lendo vários obituários espalhados pelo chão e comendo bombons.

Homem: João Carlos Mouro. Médico. Morreu de enfarto na tarde de ontem...

Mulher: Natural não.

Homem: Quê?

Mulher: Morte natural não. Tem que ser mais forte.

Homem: Me dá mais um bombom.

Mulher: Continua.

Homem: Silvia Regina Soares. Advogada, 61 anos. Morreu em acidente de...

Mulher: Nem adianta.

Homem: Advogado não emociona?

Mulher: Sessenta e um anos.

Homem: Mas foi de acidente.

Mulher: Não emociona. Morte de velho não emociona. Próximo.

Homem: Eu vou me atrasar pra aula.

Mulher: Seus alunos também, fica tranqüilo. Fecharam o túnel outra vez.

Homem: Criança atropelada?

Mulher: Ocupação na rocinha.

ELE VAI FALAR E ELA INTERROME.

Mulher: Sem óbitos, por enquanto, já chequei.

Homem: Não era isso que eu ia perguntar.

Mulher: Gente essa ocupação tá uma loucura.

Homem: É mesmo, é?

Mulher: Pegando fogo!

Homem: Eu não tenho conseguido acompanhar.

Mulher: Eu não perco um capítulo.

Homem: Que bom.

Mulher: Tão em polvorosa o CV e o PCC.

Homem: Não era ADA e TC?

Mulher: Esses viraram o TCP.

Homem: Oi?

Mulher: Terceiro comando puro.

Homem: Terceiro comando puro?

Mulher: O terceiro comando puro.

Homem: Como assim, terceiro comando puro.

Mulher: Terceiro comando puro, terceiro comando puro. Você não sabe o que é o terceiro comando puro?

Homem: Não.

Mulher: É o TCP. Porque o Uê foi expulso do CV depois de uma ação malsucedida com o PCC. E o TC também era dissidência do CV. Com a morte do Uê e a prisão do Celsinho da Vila Vintém, o ADA que os dois tinham criado pra rivalizar com o CV resolveu se unir ao TC e virou TCP.

Homem: O terceiro comando puro.

Mulher: Justamente. O terceiro comando puro. Você não conhecia o Tercerio comando puro?

Homem: Nem.

Mulher: Não, meu amor, esse já caiu.

Homem: E o PCC?

Mulher: Continua firme e forte em São Paulo.

Homem: Como é que você sabe disso tudo?

Mulher: Ué... Eu leio jornal.

Homem: Enfim, terceira aula perdida essa semana.

Mulher: Ontem também não teve?

Homem: Terminou mais cedo.

Mulher: Por quê?

Homem: Tiroteio de novo.

Mulher: Morreu alguém?

Homem: Não.

Mulher: Droga. (tempo) Continua.

Homem: A gente já vasculhou os obituários do estado inteiro.

Mulher: Tem que arrumar um enterro bom pra amanhã.

Homem: Nós fomos ontem.

Mulher: E daí?

Homem: Podem descobrir.

Mulher: Como descobrir? Você acha que a mãe do defunto vai gritar no meio do cortejo “Para tudo que aqueles dois são penetras!”

Homem: Não é isso.

Mulher: Continua.

Homem: Abelardo da Fonseca Soa...

Mulher: Pode parar. É velho.

Homem: Como é que você sabe?

Mulher: Pelo nome. Abelardo é velho.

Homem: (tempo) É velho.

Mulher: Dá pra saber pelo nome.

Homem: Será?

Mulher: Batata.

Homem: Adamastor...

Mulher: Velho.

Homem: Ruth...

Mulher: Velha.

Homem: Darci.

Mulher: Velho.

Homem: Ariosto.

Mulher: Velho e cafona. Ainda bem que morreu.

Homem: Leopoldo pode?

Mulher: Tá no limite. Vê aí, quantos anos.

Homem: Quarenta e cinco. Mas foi enfarto do miocárdio.

Mulher: Muito sem graça. Não vou derramar uma lágrima.

Homem: Me dá mais um bombom.

Mulher: Acabou.

Homem: Você tá linda.

Mulher: Obrigada.

Homem: Muito linda.

Mulher: Vamo voltar pros obituários?

Homem: Vamo.

Mulher: E não e venha com Carmelitas, Ataulfos e Zelis.

Homem: A maioria das mortes nas páginas de obituário é de gente de idade.

Mulher: O que é que você sugere?

Homem: Páginas policiais?

Mulher: Ótima idéia!

Homem: Você achou?

Mulher: Genial!

Homem: Que gostoso.

Mulher: O que é que temos?

Homem: Assalto a mão armada em agência bancária do Leblon...

Mulher: Não.

Homem: Menina mantida em cárcere privado como escrava...

Mulher: Não.

Homem: Pedófilo preso na Barra da Tijuca...

Mulher: Não entendo esse povo.

Homem: Pedófilo?

Mulher: Barra da Tijuca. Ô gentinha cafona. Se bem que pedofilia também é uma loucura. Muito doente ter prazer com coisa estranha...

Homem: Aqui!

Mulher: O quê?

Homem: Um homem morreu eletrocutado numa banheira de uma cobertura da Lagoa.

Mulher: Não vai ser bom.

Homem: Ele é jovem!

Mulher: Eu sei...

Homem: E foi eletrocutado.

Mulher: Mas é cobertura na Lagoa. Família rica. Vai ser aquele bando de gente com um óculos gigante tapando a cara e sem derrubar uma lágrima. Gente rica é muito fria.

Homem: É né?

Mulher: Enterro, meu amor, quanto mais pobre melhor. As mães se jogam em cima do defunto, gritando descabelada. Aquilo sim é que é velório.

Homem: Você tem razão.

Mulher: A gente precisa de enterro mais fortes.

Homem: Deixa eu continuar procurando.

Mulher: Eu vou ver se eu acho alguma coisa na TV.

(PAUSA)

Homem: Você queria o quê?

Mulher: Como assim?

Homem: Se você pudesse escolher.

Mulher: Escolher?

Homem: Berinjela no mercado.

Mulher: Um obituário?

Homem: Como você escolhe berinjela no mercado.

Mulher: Sei.

Homem: Berinjela não. Um sanduíche. Naquelas lojas, sabe? Que você monta? Loja que monta.

Mulher: Sei.

Homem: Nem escolher é.

Mulher: É montar.

Homem: Montar.

Mulher: Pão preto com coração de alcachofra e presunto de Parma.

Homem: Delícia.

Mulher: Deixa eu pensar.

Homem: Que gostoso!

Mulher: Nasceu no Rio de Janeiro...

Homem: Bom. Rio de Janeiro.

Mulher: ...em 1979.

Homem: Continua.

Mulher: Nasceu no Rio de Janeiro em 1979... Ai, é difícil, isso me dá um ajuda.

Homem: Não. É o seu obituário.

Mulher: O meu obituário?

Homem: Não o “seu” obituário. Mas o seu obituário ideal.

Mulher: Meu obituário ideal?

Homem: É. O que te faria chorar mais grave.

Mulher: Gostei.

Homem: Tem comida pro almoço?

Mulher: Frango. (para si) Nasceu no Rio de Janeiro em 1979, no bairro de Botafogo...

Homem: Frango?

Mulher: É. Ensopadinho com quiabo. ...rio de Janeiro, 1979, botafogo, se formou estudou no Pedro II...

Homem: Eu acho frango tão sem graça.

Mulher: Eu botei colorau pra dar uma bossa... se formou em Ciências Contábeis...

Homem: Preferia carne.

Mulher: Acabou...se formou na UFRJ em Matemática, começou a dar... começou a dar aulas com 23 anos...

Homem: Vou fazer um prato, você quer?

Mulher: Não. Tô sem fome. Rio de Janeiro, 1979...

Homem: Tem certeza?

Mulher: Fome nenhuma. Começou a dar aula com 23, 30, 31,32!

Homem: Oi?

Mulher: Terminei. Nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Desde criança demonstrou habilidades para matemática. Ganhou o concurso nacional de adições em 89 e o prêmio jovem cientista em 95. Passou a dar aulas com 23 anos lecionando em mais de 13 colégios da cidade para alunos do ensino médio e fundamental. Morreu aos 32. (pausa) Eu queria ser obituarista. Será que existe essa palavra?

O homem fica aterrorizado. Ela acaba de descrevê-lo.

Homem: De quê?

Mulher: Oi?

Homem: Morreu de quê?

Mulher: Suicídio.

Homem: (tempo) Suicídio?

Mulher: Suicídio.

Homem: (tempo) Por quê?

Mulher: É mais forte que acidente de carro. E mais forte que assassinato. Nível máximo de choro. O choro mais grave.

Homem: (pausa) Esse é o seu obituário ideal.

Mulher: É. O mais perfeito. (pausa).

SOBE SOM DA TV

Voz do locutor: E mais um ônibus foi incendiado no embate entre policiais e traficantes na tarde de hoje, em Bogotá, na Colômbia. Dessa vez, o veículo era escolar. Segundo as primeiras informações, cerca de 20 adolescentes estavam no coletivo. A polícia não confirma o número de vítimas, mas testemunhas dizem que pelo menos 10 jovens estão mortos e outros cinco tiveram queimaduras de terceiro grau nos braços e nas pernas.

Mulher: Achamos nosso próximo enterro. Vamos almoçar?

ENTRA MÚSICA DE AMOR EM ESPANHOL (MEIO ALMODOVAR)

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

OBITUÁRIO IDEAL – Cena 3

IMG_1386-copy_foto_paula_kossatz_press-520x346  ENTRA “POUR QUE L´AMOUR ME QUITTE” DE CAMILLE. A MÚSICA VAI BAIXANDO ATÉ IR PARA A TV. ENTRA NOTÍCIA.

Voz do locutor: Locutor de TV: Foram encontrados nesta Quarta-feira os ossos do pé direito da namorada do jogador de basquete americano Parker James. Os restos do membro foram achados atrás de uma escola primária no subúrbio de Columbine. Muito abalado, o jogador disse que não vai se pronunciar sobre o caso. Segundo acusações, Parker teria sido o mandante do crime e o corpo da mulher teria desaparecido porque seus restos mortais foram comidos por um cachorro.

HOMEM ENTRANDO.

Homem: Oi meu amor.

Mulher: Onde é que você tava?

Homem: Como, onde eu tava, no colégio.

Mulher: Dando aula?

Homem: Não. Velando os corpos dos alunos que morreram num massacre.

Mulher: Sério?

Homem: Claro que não! Você acha que a gente mora nos Estados Unidos?

Mulher: Estados Unidos?

Homem: Ah é, já teve isso aqui também.

Mulher: Por que é que você chegou tão tarde?

Homem: Fecharam o túnel de novo.

Mulher: Ocupação na rocinha?

Homem: Criança atropelada.

Mulher: Ela morreu?

Homem: Não.

Mulher: Droga.

Homem: Que foi?

Mulher: A gente não vai conseguir chegar a tempo no cemitério.

Homem: Não é minha culpa.

Mulher: Você chegou muito atrasado.

Homem: Eu não posso pedir dispensa do trabalho pra ir ao cemitério.

Mulher: Você fez isso mês passado.

Homem: Foi o enterro da minha vó!

Mulher: Ninguém precisa saber que você não conhece o morto.

Homem: Desculpa, meu amor, mas acho melhor a gente deixar pro fim de semana.

Mulher: Fim de semana é muito longe! Eu fiquei o dia inteiro sonhando com um velóriozinho no Caju.

Homem: Você não foi trabalhar?

Mulher: Eu não ia hoje, lembra. Eu tinha consulta com aquele médico.

Homem: Ah. (pausa) E como é que foi?

Mulher: Eu não fui.

Homem: Por quê?

Mulher: Não tive vontade.

Homem: Você sabe como essa consulta era importante.

Mulher: Eu sei... Mas eu não tive vontade. Eu não... tive vontade.

Homem: Você quer que eu vá com você?

Mulher: Não precisa.

Homem: Se você quiser eu posso ir.

Mulher: Não precisa.

Homem: Esse médico é muito importante você pode tar com/

Mulher: Eu já disse que não precisa!

SILÊNCIO. ENTRA UMA RISADA DE CLAQUE NA TELEVISÃO.

Homem: Você ainda tem medicamento?

Mulher: O quê?

Homem: Eu perguntei se você ainda tem medicamento.

Mulher: Tenho. Ainda tenho.

Homem: Quando acabar me fala. Eu consigo mais pra você.

Mulher: Pode deixar.

Homem: Mas você não pode ficar tomando isso sem saber se/

Mulher: Eu vou preparar o seu jantar.

ELE VAI SAIR E PARA.

Homem: Tenta remarcar a consulta.

SILÊNCIO

Homem: É muito importante. Não só pelo óbvio. Mas pra saber se a gente.

SILÊNCIO

Homem: Você sabe que o meu maior sonho é ter um filho com voc/

Mulher: Eu vou tentar.

Homem: Que bom que você vai tentar.

SILÊNCIO. ELE NEM TENTA MAIS SE APROXIMAR. HOMEM VAI SAINDO.

Mulher: Como é que foi hoje?

Homem: Como é que foi o quê?

Mulher: Na escola. Como é que foi lá na escola hoje?

Homem: Na escola?

Mulher: Você não tava dando aula?

Homem: Tava... É... A minha aula foi boa. Hoje foi resultado de prova. A média foi surpreendente. Eu fiquei muito feliz.

Mulher: Ficou?

Homem: A minha turma teve a maior média da escola. E equação de segundo grau não é pudim.

MULHER LONGE. DEMORA UM TEMPO PRA RESPONDER.

Mulher: Que bom.

HOMEM TENTA SE APROXIMA DA MULHER, ELA SE DESVENCILHA. FICA UM CLIMA TENSO E ELA MANDA:

Mulher: Eu acabei não descongelando a carne.

Homem: Não tem problema.

Mulher: Eu fiquei tão, sei lá, passei a tarde tão que e eu acabei não.

Homem: Eu já disse que não tem problema.

Mulher: Eu posso fazer uma massa se você quiser.

Homem: Eu acho ótimo.

Mulher: Só que não tem macarrão integral.

Homem: Não tem?

Mulher: Eu me esqueci totalmente.

Homem: Eu também tinha ficado de comprar.

Mulher: E não dá mais pra comer o de farinha branca.

Homem: Não dá.

Mulher: É um veneno!

Homem: A cola!

Mulher: Pois é, menino, a cola.

Homem: Sabia que eu passei na biblioteca lá da escola outro dia e eles tavam recuperando uns livros antigos...

Mulher: É mesmo?

Homem: Com cola de farinha branca?

Mulher: Mentira?

Homem: Não pode pôr espiral porque descaracteriza o clássico do livro.

Mulher: Claro, o clássico.

Homem: Então eles tavam colando à moda antiga.

Mulher: Com cola de farinha branca.

Homem: Duas xícaras de água filtrada, duas colheres de sopa de farinha de trigo e uma colher de sopa de vinagre.

Mulher: Que absurdo!

Homem: Você ferve a água, mistura a farinha e depois leva tudo de volta ao fogo brando e fica mexendo por dez minutos até ficar um mingau.

Mulher: Eu não acredito.

Homem: Depois você desliga o fogo, acrescenta a colher de vinagre e tá pronta a cola!

Mulher: Nossa!

Homem: Agora imagina: se farinha branca e água fazem cola o que é que o macarrão comum não faz com o nosso corpo?

Mulher: Eu não gosto nem de imaginar.

Homem: É um horror!

Mulher: Fortíssimo!

Homem: Descabido.

Mulher: Uma violência.

Homem: Tão brutal quanto a gordura trans!

TEMPO.

Mulher: A gente pode ligar e pedir um sanduíche então. (tempo) No pão integral, claro.

Homem: Isso, no pão integral.

TEMPO

Homem: Eu prometo pra você que a gente vai a um enterro.

Mulher: Ai, promete?

Homem: Vai te deixar feliz?

Mulher: Vai.

Homem: Então eu te levo a todos os enterros do mundo.

Mulher: Essa foi a coisa mais bonita que você disse pra mim. (PAUSA) É que é diferente, sabe? O que eu tenho sentido durante o enterro. Tem sido uma experiência. Você sabe. É uma experiência.

Homem: Eu sei.

Mulher: No último velório. Do menino com a facada no coração, a injeção de ar na veia e os doze tiros na cabeça.

Homem: Treze.

Mulher: Isso, treze. Lembra a hora que a mãe chegou?

Homem: A gente já tava na capela. Escondido ali no canto.

Mulher: Quando ela chegou e foi até o caixão. Quando ela viu o filho morto pela primeira vez.

Homem: Eu sei.

Mulher: Foi muito forte. Muito forte. Era uma descarga de energia tão grande em forma de choro. Era mais que um choro. Era mais que qualquer coisa, na verdade. Era amor.

Homem: Amor?

Mulher: Só amor. Amor puro.

Homem: O rapaz tava morto. Não podia mais ser amor. Amor tem que ser entre du/

Mulher: Era sim. O amor por um morto é o mais verdadeiro. Porque quem ama não tem como receber nada em troca.

Homem: Eu vou tomar banho.

HOMEM VAI SAIR. MULHER O CHAMA.

Mulher: Você.

Homem: Eu o quê?

Mulher: Você nunca falou nada.

Homem: Eu falei um monte sobre a farinha branca!

Mulher: Eu tô falando dos enterros.

Homem: Ah, tá, dos enterros.

Mulher: Você nunca falou nada. (TEMPO) Qual é a hora que você mais gosta?

Homem: A hora da descida. Eu gosto mais da hora da descida.

Mulher: A hora da descida?

Homem: Quando o caixão desce pra cova.

Mulher: Por quê?

Homem: Porque é quando você me abraça.

ENTRA MÚSICA. MULHER BEIJA O HOMEM.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

OBITUÁRIO IDEAL – Cena 2

384246_2815543144777_1144789244_3289695_995145910_n  Televisão. Ouvimos (ou vemos) apresentador de um jornal.

Voz do locutor: Foram encontrados nesta Quarta-feira ossos da da perna esquerda da namorada do jogador de basquete americano Parker James. Os restos do membro estavam enterrados atrás de uma escola primária no subúrbio de Columbine. Segundo acusações, a namorada de Parker foi esquartejada e teve seus restos mortais foram comidos por cachorros.

HOMEM E MULHER ENTRANDO EM CASA. ELE VAI BUSCAR CHAMPAGNE.

Mulher: A porta da sala batendo.

Homem: Da sala?

Mulher: Dos fundos!

Homem: A porta dos fundos batendo.

Mulher: Eu não sei o que é que tá acontecendo comigo.

Homem: É mesmo?

Mulher: Muito forte.

Homem: A porta da sua casa batendo quando você tinha quinze anos ou a tampa do caixão fechando no enterro de hoje.

Mulher: É como se elas fossem a mesma coisa.

Homem: Eu não entendi.

Mulher: O barulho da porta dos fundos batendo quando eu tinha quinze anos me fez sentir a mesma coisa quando fechou forte a tampa daquele caixão hoje no enterro.

Homem: Fechou bem forte, né?

Mulher: Muito forte.

Homem: Até deu uma bambeada.

Mulher: Menino, eu achei que o defunto fosse cair.

Homem: Mas conta.

Mulher: Da porta?

Homem: De quando você tinha quinze anos.

Mulher: Tá bom.

Homem: Que gostoso.

Mulher: Era uma tia em Quiçamã.

Homem: Você tinha uma tia em Quiçamã?

Mulher: Ela morreu quando eu tinha quinze anos.

Homem: Ninguém tem parente em Quiçamã.

Mulher: Ataque cardíaco ou embolia.

Homem: Se ainda fosse Lumiar...

Mulher: Minha mãe saiu do Rio com a minha irmã.

Homem: Só você...

Mulher: Foi pro enterro da minha tia e eu fiquei.

Homem: Ficou.

Mulher: Sozinha em casa.

Homem: Só você?

Mulher: Só.

Homem: Pela primeira vez na vida.

Mulher: Como é que você sabe?

Homem: Lógica

Mulher: Minha tia morre no interior do estado e eu fico sozinha em casa pela primeira vez na vida? Isso é lógica?

Homem: Você comparou a tampa do caixão fechando no enterro de hoje com a batida da porta dos fundos da sua casa. Quando você tinha quinze anos.

Mulher: Foi.

Homem: E disse que foi um sentimento libertador.

Mulher: Foi.

Homem: Liberdade. Ficar sozinha pela primeira vez (tempo) Lógica.

Mulher: Enfim.

Homem: Irônico.

Mulher: O quê?

Homem: As duas vezes têm a ver com a morte.

Mulher: É. Muito irônico.

HOMEM ABRE A GARRAFA DE CHAMPAGNE.

Homem: E o choro?

Mulher: O que é que tem?

Homem: Foi bom?

Mulher: Eu nem chorei quando a minha tia morreu.

Homem: Eu to falando de hoje.

Mulher: Ah, tá. Foi bom. Foi muito bom.

Homem: Que bom.

Mulher: Chorar é bom, né?

Homem: Tem sido.

Mulher: E pensar que tem gente que toma remédio pra não.

Homem: Como assim?

Mulher: Antidepressivo.

Homem: Ah, claro.

Mulher: Tem gente que toma antidepressivo.

Homem: Que loucura, né?

Mulher: Pra não chorar

Homem: Um desperdício.

Mulher: Devia ser o contrário.

Homem: Como assim?

Mulher: Remédio pra chorar.

Homem: Pra chorar?

Mulher: É. Um remédio que fizesse chorar.

Homem: Tipo um... depressivo.

Mulher: Um depressivo.

Homem: Você toma, deprime um pouquinho, sofre...

Mulher: E quando passa o efeito você tá ótimo.

Homem: No estado normal.

Mulher: Sem efeito colateral.

Homem: Só você.

Mulher: Não dá pra desperdiçar mais choro.

Homem: É, não dá.

Mulher: Você não viu hoje?

Homem: Eram muitos, né?

Mulher: Muitos choros.

Homem: Muitos choros. Eu nunca imaginei que tivessem tantos tipos de choro.

Mulher: São muitos mesmo.

Homem: Daria até pra classificar.

Mulher: O choro?

Homem: De acordo com o tipo.

Mulher: Mas isso se faz.

Homem: Como assim?

Mulher: Classificar os choros de acordo com o tipo.

Homem: Sério?

Mulher: Choro grave é mais doído.

Homem: Olha!

Mulher: Todo mundo que trabalha em hospital sabe disso.

Homem: Que interessante.

Mulher: Os médicos vivem receitando analgésico de acordo com a gravidade do choro.

Homem: É mesmo?

Mulher: Quanto mais grave o choro, mais forte é o remédio.

Homem: Que interessante.

Mulher: Vivem me pedindo ajuda lá no hospital.

Homem: Por quê?

Mulher: Enfermeira geralmente é mais sensível. Os médicos são mais acostumados. Meio que banaliza, sabe?

Homem: Perderam a referência do grave.

Mulher: A gente ainda tem o ouvido bom.

Homem: Entendi.

Mulher: Ainda tem uma certa capacidade de sentir.

Homem: Você quer dizer ouvir.

Mulher: Isso.

PAUSA.

Homem: E hoje?

Mulher: O que é que tem?

Homem: Você conseguiu identificar? Se os choros eram muito doídos.

Mulher: Muito.

Homem: Algum em especial?

Mulher: O da mãe, eu acho.

Homem: Da mãe!

Mulher: Choro de mãe costuma ser gravíssimo.

Homem: O da namorada parecia tar bem grave.

Mulher: Mas choro de namorada engana.

Homem: Por quê?

Mulher: É curtinho e sobressaltado.

Homem: Não reparei.

Mulher: Não dá pra perceber se é grave. Porque é curtinho e sobressaltado.

Homem: Entendi.

Mulher: Choro de vó que bom.

Homem: Ah é, é?

Mulher: Gente velha chora longo.

Homem: Jura?

Mulher: É bem sofrido.

Homem: Por quê será?

Mulher: Que é mais sofrido?

Homem: Que gente velha chora longo?

Mulher: Acho que tem a ver com fazer tudo devagar: é velho.

Homem: De repente a proximidade da morte também.

Mulher: Como assim?

Homem: O sujeito chora pelo morto e lembra que daqui a pouco é vez dele de tar ali.

Mulher: Pode ser.

Homem: Aí chora em dobro. Por ele e pelo morto. O choro fica longo.

Mulher: Bem capaz.

Homem: Que loucura...

Mulher: O quê?

Homem: Choro grave é mais doído.

Mulher: É. Choro grave.

MULHER IMITA LEVEMENTE UM CHORO GRAVE.

Homem: E você.

Mulher: Eu?

Homem: O teu choro foi muito grave?

Mulher: Difícil medir o próprio choro.

Homem: Eu imagino.

Mulher: Mas acho que não foi muito grave.

Homem: Não foi.

Mulher: Até porque eu não conhecia a morto.

Homem: É. (pausa) Até por isso. (pausa) O cheiro melhorou?

Mulher: Cheiro?

Homem: Na semana passada você disse que o cheiro te enjoou, lembra. Eu até achei que... eu até achei que você pudesse... eu achei que a gente podia ter... que você.

Mulher: Eu me lembro.

Homem: O cheiro melhorou?

Mulher: O cheiro foi suportável porque o enterro foi muito mais emocionante.

Homem: Por que será?

Mulher: Que o enterro foi mais emocionante.

Homem: Só.

Mulher: A gente tava mais solto.

Homem: Ou vai ver foi a vítima.

Mulher: O morto.

Homem: Nesse caso, vítima.

Mulher: Era o quê mesmo, hein?

Homem: Bala perdida, eu acho.

Mulher: Sei.

Homem: Não. Assassinato. Parece que o garoto do enterro de hoje estava envolvido com o tráfico. Ele morreu com uma facada na jugular, uma injeção de ar veia e treze tiros na cabeça. A morte do outro enterro que a gente foi tinha sido acidente de carro. Tiro na cabeça é mais forte, né?

Mulher: Com certeza.

Homem: Então deve ser a causa da morte da vítima.

Mulher: É isso. Causa da morte conta.

Homem: Se conta!

Mulher: Causa da morte.

Homem: Justamente. Causa da morte.

Mulher: A causa da morte.

Homem: A da morte.

Mulher: Causa da morte

Homem: E o garoto também era novo.

Mulher: Claro, a idade.

Homem: A idade ajuda.

Mulher: Ajuda muito.

Homem: E como ajuda.

Mulher: Ajuda, ajuda.

Homem: Ô se ajuda!

Mulher: É muita ajuda.

Homem: Ajuda, ajuda.

Mulher: Ajuda.

Homem: Ajuda.

Mulher: Ajuda, ajuda.

Homem: A idade ajuda.

Mulher: Fica mais triste.

Homem: Muito mais.

Mulher: Dezenove anos.

Homem: Não, não. Dezessete.

Mulher: Ele era menor?!

Homem: Você não sabia?

Mulher: Se eu soubesse teria chorado o dobro.

Homem: No próximo eu não esqueço de te dizer a idade. É sempre bom checar antes do enterro.

Mulher: Merece um brinde.

Homem: Vamos brindar então.

Mulher: A quê?

Homem: Ao garoto.

Mulher: É muito mórbido.

Homem: Então a quê?

Mulher: À paz. Essa paz que vem depois do choro.

Homem: À paz, então. (tempo)

ELES BRINDAM. FICAM ALI UM POUQUINHO.

Mulher: Porque é que você tá fazendo isso?

Homem: O quê?

Mulher: Tudo. Por que é que você tá fazendo isso tudo?

Homem: Porque eu quero ser o melhor.

Mulher: O quê?

Homem: Por você.

Mulher: Como é que é?

Homem: Eu quero ser o melhor, por você.

Mulher: Eu não entendi.

Homem: No início a gente era, lembra? Parecia que o mundo e a gente era. Mas agora não é mais.

Mulher: Elas morrem.

Homem: Quem?

Mulher: As coisas morrem.

Homem: Eu não vou deixar. (pausa) Eu não controlo a umidade relativa do ar, a queda do copo, a minha vontade de açúcar nem o seu desejo por mim. Mas eu vou fazer tudo o que eu puder pra que a gente volte a ser. Tudo o que eu puder pra ser o melhor.

Mulher: E se não for?

Homem: Eu vou sofrer.

HOMEM TENTA BEIJAR MULHER. ELA SE DESVENCILHA. HOMEM SAI. MULHER FICA ALI.

Homem: Eu vou pegar mais champanhe.

HOMEM SAI. OUVIMOS O BARULHO DA TELEVISÃO. UM TELEVENDAS OU ALGO DO TIPO. HOMEM VOLTA. MULHER MEIO QUE NUM TRANSE.

Mulher: Sabe o que eu tava pensando?

Homem: Em como a gente se ama e devia ter um filho.

Mulher: (COMO SE FOSSE UMA VIOLÊNCIA) O quê???

Homem: Nada. No que é que você tava pensando?

Mulher: No choro grave.

Homem: O choro grave?

Mulher: Como é que deve ser o choro grave. Você acha muita loucura uma mini-entrevista.

Homem: O quê?

Mulher: Com uma das mães.

Homem: Você tá falando de chegar no meio do velório e perguntar pra uma senhora que chora o filho morto “e aí, o que é que você tá sentindo”?

Mulher: Não era dessa maneira.

Homem: Tem uma outra forma de saber.

Mulher: Como?

Homem: Chorando grave.

Mulher: Você acha que a gente consegue.

Homem: A gente consegue.

Mulher: A gente não consegue.

Homem: Eu acho que é uma questão de tempo.

Mulher: Como assim?

Homem: Quanto mais a gente for a enterro, mas a coisa vai ficando real.

Mulher: Você acha?

Homem: Vai deixando de ser teatro.

Mulher: Eu tenho dúvida.

Homem: Confia em mim. O que você sentiu hoje já não foi mais forte que no primeiro enterro?

Mulher: Foi.

Homem: Então.

Mulher: Mas teve uma hora quando o padre começou a dar sermão e eu me lembrei que tinha acabado o Ajax.

Homem: Hã?

Mulher: O produto de limpeza.

Homem: Entendi.

Mulher: Na hora do sermão do padre eu me lembrei que eu tinha que comprar Ajax.

Homem: A gente compra.

Mulher: Mas eu não queria, entende? Eu queria ter ficado dentro o tempo todo. Tava bom. A gente tava ali, abraçado, eu chorando no seu ombro. Tava tão de verdade.

Homem: Uma hora a gente vai conseguir ficar de verdade o tempo inteiro.

Mulher: Você acha?

Homem: Não vai mais ser teatro.

Mulher: Tomara. (pausa) Mas como é que a gente vai saber?

Homem: O quê?

Mulher: Quando parar de ser teatro e começar a ser real. Como é que a gente vai saber que atingiu o choro grave?

Homem: A gente pode criar um método.

Mulher: Um método.

Homem: Pra medir os nossos choros

Mulher: A gravidade do choro.

Homem: Isso.

Mulher: E como seria?

Homem: Com um gravador.

Mulher: Fala mais.

Homem: É bem simples, na verdade. Você grava a sua voz normal. Uma voz guia.

Mulher: Sei.

Homem: Depois descobre a frequência da voz. E compara com os nossos choros nos funerais.

Mulher: Os choros gravados nos funerais.

Homem: Isso. Comparando os choros com a frequência normal da nossa voz a gente tem uma escala de gravidade do pranto. É simples. Função de onda.

Mulher: Quase um problema.

Homem: Problema?

Mulher: De matemática, que você passa pros seus alunos.

Homem: Ah, é. Quase isso.

Mulher: Mas eu achei a idéia genial.

Homem: Você achou?

Mulher: Genial. Outro jovem cientista.

Homem: Hein?

Mulher: O prêmio jovem cientista.

Homem: Ah, tá. Eu não tenho mais idade pra ganhar.

ELES SORRIEM. QUASE SE APROXIMAM.

Homem: Você tá bem?

Mulher: Eu tô.

Homem: Que bom.

(PAUSA. SEDUZ)

Mulher: Eu acho que... eu tô começando.

Homem: Começando.

Mulher: A sentir vontade.

Homem: É?

Mulher: Eu to bem melhor.

Homem: Que bom.

Mulher: Muito melhor.

Homem: Bem bom.

Mulher: Meu amor.

Homem: Fala.

Mulher: Eu posso te pedir uma coisa?

Homem: O que você quiser.

Mulher: Me leva pro cemitério?

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

OBITUÁRIO IDEAL – Cena 1

382716_10150613305433066_720623065_11792758_1580580536_n O barulho da serra some e vemos o homem cortando um enorme rosbife com uma faca elétrica. O barulho de uma televisão vem de uma única caixa. Ouvimos a seguinte notícia.

Voz do locutor: O braço de um recém-nascido foi encontrado nesta Segunda-feira na lata de lixo de uma loja de departamento em Realengo, Rio de Janeiro. O membro foi achado por uma menina de sete anos que acreditava ser parte de uma boneca. Segundo a perícia, o pequenino braço esquerdo pertencia a um bebê de cerca de dois meses. A polícia ainda não tem pistas sobre o caso.

(o volume abaixa)

Essa edição fica por aqui. Voltaremos mais tarde com o jornal da noite ou a qualquer momento com novas informações.

(entra programação normal)

Homem: Você quer mais?

Mulher: Não. (pausa) Por enquanto não.

Homem: Tem certeza?

Mulher: Acho que sim.

Homem: Eu posso saber por quê?

Mulher: O quê?

Homem: Eu perguntei por que você não quer mais.

Mulher: Eu não aguento.

Homem: Como não aguenta?

Mulher: É muito forte.

Homem: Sério?

Mulher: E muito cru.

Homem: Eu não achei tão cru.

Mulher: Eu não sabia que era tão cru.

Homem: Não é tão cru.

Mulher: O cheiro também...

Homem: O que é que tem o cheiro?

Mulher: Não me fez bem.

Homem: Você achou ruim?

Mulher: Me embrulhou o estômago um pouco...

Homem: Que loucura.

Mulher: Eu tenho ficado enjoada à toa.

Homem: Enjoada?

Mulher: É, eu tenho ficado enjoada à toa.

Homem: Você... Você acha que... Você tá... Você?

Mulher: Eu?

Homem: Enjoada à toa. Eu achei que de repente você tava, de repente você tava você.

Mulher: Como?

Homem: Ué. Como assim “como”?

Mulher: Como?

ELE TENTA PEGAR NA MÃO DELA. ELA SE DESVENCILHA E DERRUBA UM TALHER NO CHÃO.

Homem: Pelo menos tava gostoso.

Mulher: Oi?

Homem: Tirando o cheiro ruim, tava gostoso.

Mulher: Eu tô em dúvida.

Homem: Por quê?

Mulher: Eu já te disse, é muito cru.

Homem: E daí?

Mulher: E daí que fica frio.

Homem: Eu não acho.

Mulher: Eu queria uma coisa mais quente.

Homem: Não entendi.

Mulher: Menos cru, mais quente e mais real.

Homem: Era muito real.

Mulher: A gente tava encenando naquele cemitério!

Homem: Eu sofri de verdade!

Mulher: Era tudo muito frio, cru e pouco real.

Homem: Eu sofri de verdade.

Mulher: Você nem conhecia o morto!

Homem: Mas na hora eu senti.

Mulher: Eu também achei que fosse, mas depois eu fiquei pensando que era teatro.

Homem: Como teatro?

Mulher: A gente não tava sofrendo de verdade. Era como se a gente estivesse num teatro.

Homem: Eu até concordo que podia ter um pouco de teatro, mas também era real.

Mulher: Como é que pode ser teatro e real ao mesmo tempo?

Homem: Assim.

Mulher: Não me fez bem.

Homem: Nós fomos a um enterro, não dá pra ser chacrinha.

Mulher: Não precisava ser tão forte.

Homem: Foi pra isso que nós fomos.

Mulher: Eu sei...

Homem: E é por isso que é real.

Mulher: Eu fico na dúvida.

Homem: Eu tenho certeza.

Mulher: Eu fico na dúvida.

Homem: Você tava gostando.

Mulher: Eu não sei...

Homem: Foi bom pra nós dois.

Mulher: Pode ser.

Homem: Mesmo frio e cru.

Mulher: Você tem razão.

Homem: Você quer mais rosbife?

Mulher: Não, obrigada. Eu tô bem.

PAUSA. ELE TENTA BEIJAR A MULHER. ELA SE DESVENCILHA.

SILÊNCIO. ELE VOLTA A COMER.

Mulher: E você?

Homem: O quê?

Mulher: Como é que foi pra você?

Homem: Eu não entendi.

Mulher: Eu queria saber o que você sentiu.

Homem: Eu me senti vivo.

Mulher: Irônico.

Homem: O quê?

Mulher: Ir a um enterro pra se sentir vivo.

Homem: Não era essa a ideia?

Mulher: Alguma coisa.

Homem: Oi?

Mulher: A ideia era sentir alguma coisa. (SENSIBILIZADA) Qualquer coisa, na verdade.

Homem: Diferente.

Mulher: Qualquer coisa diferente daqui.

Homem: Qualquer coisa diferente daqui.

Mulher: Qualquer coisa diferente daqui.

Homem: E você sentiu?

Mulher: O quê?

Homem: Qualquer coisa diferente daqui.

Mulher: É difícil dizer.

Homem: Faz um esforço.

Mulher: Eu não consigo falar.

Homem: Para e pensa.

Mulher: Eu não sei.

Homem: É só dizer sim ou não.

Mulher: Eu acho que sim.

Homem: Você tem certeza que não quer mais rosbife?

SILÊNCIO.

Mulher: Não, obrigada.

ELE VOLTA A COMER.

Mulher: Muito vermelho.

Homem: O quê?

Mulher: O rosbife. Tá muito vermelho.

Homem: Não é a ideia?

Mulher: Eu não gosto. Da próxima vez eu vou deixar tostar mais.

Homem: Você vai matar o que é rosbife.

Mulher: O quê?

Homem: O rosbife é um assado de contrafilé ou lagarto que tem como característica ser cozido por fora e levemente cru por dentro. Ele deve ser servido frio geralmente acompanhado de salada de batatas. Frio e cru ele é rosbife. Quente e assado, ele vai passar a ser outra coisa. Ele vai deixar de ser um rosbife e pra ser um... bife. Se da próxima vez você tostar mais você vai matar o que é rosbife.

Mulher: Entendi.

Homem: Você tem certeza que não quer mais rosbife?

Mulher: Eu já disse que não.

Homem: E enterro?

Mulher: O quê que tem?

Homem: Você quer mais? Você quer ir a outro enterro?

Mulher: Eu não sei...

Homem: Mas foi tão bom.

Mulher: É que eu não sei se o que eu senti lá foi de verdade.

Homem: Por quê?

Mulher: Porque eu não conhecia o morto, porque eu não conhecia o morto e porque não doeu tanto.

Homem: Você sentiu.

Mulher: Eu fiquei confusa.

Homem: Eu vou te ajudar.

Mulher: O quê?

Homem: O que é que aconteceu?

Mulher: O que aconteceu?

Homem: No enterro. O que é que aconteceu no enterro?

Mulher: Eu chorei.

Homem: Você chorou.

Mulher: Eu chorei.

Homem: Que mais?

Mulher: Eu só chorei.

Homem: Só chorou?

Mulher: Eu chorei muito.

Homem: Foi muito choro.

Mulher: Muito choro.

Homem: Muito choro.

Mulher: Muito choro!

Homem: E como é que ele era?

Mulher: O choro.

Homem: Como é que era o choro?

Mulher: Era choro.

Homem: Lágrima, nariz, olho.

Mulher: Isso.

Homem: Tudo de verdade.

Mulher: O choro.

Homem: E o cheiro?

Mulher: O cheiro do choro?

Homem: Você disse que sentiu um cheiro ruim no enterro.

Mulher: Eu senti.

Homem: Verdade também.

Mulher: Era bem forte.

Homem: Como o corpo.

Mulher: O corpo do morto.

Homem: Você viu?

Mulher: Eu encostei!

Homem: Olha.

Mulher: Era bem frio.

Homem: Não era teatro.

Mulher: Frio e forte.

Homem: Olha.

Mulher: Frio, forte e cru.

Homem: Você tem certeza?

Mulher: Eu tenho.

Homem: E você tá bem?

Mulher: Eu to feliz.

Homem: Feliz?

Mulher: Tô mais que feliz.

Homem: Que bom.

Mulher: E em paz.

Homem: Que felicidade.

Mulher: Ganhei de volta.

Homem: A paz.

Mulher: Ganhei de volta a paz.

Homem: Que bom.

Mulher: Foi o melhor choro da minha vida.

Homem: Que felicidade.

Mulher: Mesmo não sendo tão real.

Homem: Que paz.

Mulher: Eu nunca me senti tão bem.

Homem: Felicidade e paz.

Mulher: E eu quero ir de novo.

Homem: Aqui seu rosbife.

B. O.

Entra LAST NIGHT I DREAMT THAT SOMEBODY LOVED ME – THE SMITHS

Ela de repente fica mais baixa e vindo de um único lugar: a televisão. A música para e ouvimos a vinheta de um jornal:

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

OBITUÁRIO IDEAL - Prólogo

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Começamos ouvindo um leve choro no B.O. O choro vai aumentando. À medida que o choro aumenta, começa a se abrir um leve foco de luz fechado no rosto de Maria. Ele começa bem baixo, a menos de 10% e vai aumentando gradativamente de acordo com o choro dela. Quando chegamos a 100%, com um choro absurdamente gritado, Maria cessa. Enxuga as lágrimas como se não tivesse acontecido nada. Olha pra baixo. Nesse momento, revela-se que Maria segurava um gravador. Ela volta um pouquinho. E dá play. Ouve o começo do choro. Dá um leve sorriso.

B.O.

Entra, pelas PA´s do teatro um som de televisão. Entra outro, que se sobrepõe a outro e a outro. Numa confusão de sons ouvimos o barulho ensurdecedor de uma serra elétrica.

Luzes.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

ESTAMOS DE VOLTA!!

Olá pessoal! Eu sei que ficamos bastante tempo sem atualizar o blog, twitter, face, blá-blá-blá… mas agora estamso de volta. Depois de um tempinho de desleixo vamos voltar à ativa.

E para começar, vamos postar a peça “Obituário Ideal”, do Rodrigo Nogueira. Colocaremos uma cena por semana, tipo uma “novelinha”, como o próprio Rodrigo sugeriu.

Postaremos os textos dos capítulos da segunda temporada de Bicicleta&Melancia – como fizemos com os da primeira. E sempre que tivermos novidades sobre a agenda do Rodrigo, colocaremos também.

Então, só me resta pedir para que vocês leiam e curtam bastante!!!!! A partir de amanhã, começamos com “Obituário Ideal”.

Beijinhos!! E até mais!!

MahIzidio