sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

OBITUÁRIO IDEAL – Cena 2

384246_2815543144777_1144789244_3289695_995145910_n  Televisão. Ouvimos (ou vemos) apresentador de um jornal.

Voz do locutor: Foram encontrados nesta Quarta-feira ossos da da perna esquerda da namorada do jogador de basquete americano Parker James. Os restos do membro estavam enterrados atrás de uma escola primária no subúrbio de Columbine. Segundo acusações, a namorada de Parker foi esquartejada e teve seus restos mortais foram comidos por cachorros.

HOMEM E MULHER ENTRANDO EM CASA. ELE VAI BUSCAR CHAMPAGNE.

Mulher: A porta da sala batendo.

Homem: Da sala?

Mulher: Dos fundos!

Homem: A porta dos fundos batendo.

Mulher: Eu não sei o que é que tá acontecendo comigo.

Homem: É mesmo?

Mulher: Muito forte.

Homem: A porta da sua casa batendo quando você tinha quinze anos ou a tampa do caixão fechando no enterro de hoje.

Mulher: É como se elas fossem a mesma coisa.

Homem: Eu não entendi.

Mulher: O barulho da porta dos fundos batendo quando eu tinha quinze anos me fez sentir a mesma coisa quando fechou forte a tampa daquele caixão hoje no enterro.

Homem: Fechou bem forte, né?

Mulher: Muito forte.

Homem: Até deu uma bambeada.

Mulher: Menino, eu achei que o defunto fosse cair.

Homem: Mas conta.

Mulher: Da porta?

Homem: De quando você tinha quinze anos.

Mulher: Tá bom.

Homem: Que gostoso.

Mulher: Era uma tia em Quiçamã.

Homem: Você tinha uma tia em Quiçamã?

Mulher: Ela morreu quando eu tinha quinze anos.

Homem: Ninguém tem parente em Quiçamã.

Mulher: Ataque cardíaco ou embolia.

Homem: Se ainda fosse Lumiar...

Mulher: Minha mãe saiu do Rio com a minha irmã.

Homem: Só você...

Mulher: Foi pro enterro da minha tia e eu fiquei.

Homem: Ficou.

Mulher: Sozinha em casa.

Homem: Só você?

Mulher: Só.

Homem: Pela primeira vez na vida.

Mulher: Como é que você sabe?

Homem: Lógica

Mulher: Minha tia morre no interior do estado e eu fico sozinha em casa pela primeira vez na vida? Isso é lógica?

Homem: Você comparou a tampa do caixão fechando no enterro de hoje com a batida da porta dos fundos da sua casa. Quando você tinha quinze anos.

Mulher: Foi.

Homem: E disse que foi um sentimento libertador.

Mulher: Foi.

Homem: Liberdade. Ficar sozinha pela primeira vez (tempo) Lógica.

Mulher: Enfim.

Homem: Irônico.

Mulher: O quê?

Homem: As duas vezes têm a ver com a morte.

Mulher: É. Muito irônico.

HOMEM ABRE A GARRAFA DE CHAMPAGNE.

Homem: E o choro?

Mulher: O que é que tem?

Homem: Foi bom?

Mulher: Eu nem chorei quando a minha tia morreu.

Homem: Eu to falando de hoje.

Mulher: Ah, tá. Foi bom. Foi muito bom.

Homem: Que bom.

Mulher: Chorar é bom, né?

Homem: Tem sido.

Mulher: E pensar que tem gente que toma remédio pra não.

Homem: Como assim?

Mulher: Antidepressivo.

Homem: Ah, claro.

Mulher: Tem gente que toma antidepressivo.

Homem: Que loucura, né?

Mulher: Pra não chorar

Homem: Um desperdício.

Mulher: Devia ser o contrário.

Homem: Como assim?

Mulher: Remédio pra chorar.

Homem: Pra chorar?

Mulher: É. Um remédio que fizesse chorar.

Homem: Tipo um... depressivo.

Mulher: Um depressivo.

Homem: Você toma, deprime um pouquinho, sofre...

Mulher: E quando passa o efeito você tá ótimo.

Homem: No estado normal.

Mulher: Sem efeito colateral.

Homem: Só você.

Mulher: Não dá pra desperdiçar mais choro.

Homem: É, não dá.

Mulher: Você não viu hoje?

Homem: Eram muitos, né?

Mulher: Muitos choros.

Homem: Muitos choros. Eu nunca imaginei que tivessem tantos tipos de choro.

Mulher: São muitos mesmo.

Homem: Daria até pra classificar.

Mulher: O choro?

Homem: De acordo com o tipo.

Mulher: Mas isso se faz.

Homem: Como assim?

Mulher: Classificar os choros de acordo com o tipo.

Homem: Sério?

Mulher: Choro grave é mais doído.

Homem: Olha!

Mulher: Todo mundo que trabalha em hospital sabe disso.

Homem: Que interessante.

Mulher: Os médicos vivem receitando analgésico de acordo com a gravidade do choro.

Homem: É mesmo?

Mulher: Quanto mais grave o choro, mais forte é o remédio.

Homem: Que interessante.

Mulher: Vivem me pedindo ajuda lá no hospital.

Homem: Por quê?

Mulher: Enfermeira geralmente é mais sensível. Os médicos são mais acostumados. Meio que banaliza, sabe?

Homem: Perderam a referência do grave.

Mulher: A gente ainda tem o ouvido bom.

Homem: Entendi.

Mulher: Ainda tem uma certa capacidade de sentir.

Homem: Você quer dizer ouvir.

Mulher: Isso.

PAUSA.

Homem: E hoje?

Mulher: O que é que tem?

Homem: Você conseguiu identificar? Se os choros eram muito doídos.

Mulher: Muito.

Homem: Algum em especial?

Mulher: O da mãe, eu acho.

Homem: Da mãe!

Mulher: Choro de mãe costuma ser gravíssimo.

Homem: O da namorada parecia tar bem grave.

Mulher: Mas choro de namorada engana.

Homem: Por quê?

Mulher: É curtinho e sobressaltado.

Homem: Não reparei.

Mulher: Não dá pra perceber se é grave. Porque é curtinho e sobressaltado.

Homem: Entendi.

Mulher: Choro de vó que bom.

Homem: Ah é, é?

Mulher: Gente velha chora longo.

Homem: Jura?

Mulher: É bem sofrido.

Homem: Por quê será?

Mulher: Que é mais sofrido?

Homem: Que gente velha chora longo?

Mulher: Acho que tem a ver com fazer tudo devagar: é velho.

Homem: De repente a proximidade da morte também.

Mulher: Como assim?

Homem: O sujeito chora pelo morto e lembra que daqui a pouco é vez dele de tar ali.

Mulher: Pode ser.

Homem: Aí chora em dobro. Por ele e pelo morto. O choro fica longo.

Mulher: Bem capaz.

Homem: Que loucura...

Mulher: O quê?

Homem: Choro grave é mais doído.

Mulher: É. Choro grave.

MULHER IMITA LEVEMENTE UM CHORO GRAVE.

Homem: E você.

Mulher: Eu?

Homem: O teu choro foi muito grave?

Mulher: Difícil medir o próprio choro.

Homem: Eu imagino.

Mulher: Mas acho que não foi muito grave.

Homem: Não foi.

Mulher: Até porque eu não conhecia a morto.

Homem: É. (pausa) Até por isso. (pausa) O cheiro melhorou?

Mulher: Cheiro?

Homem: Na semana passada você disse que o cheiro te enjoou, lembra. Eu até achei que... eu até achei que você pudesse... eu achei que a gente podia ter... que você.

Mulher: Eu me lembro.

Homem: O cheiro melhorou?

Mulher: O cheiro foi suportável porque o enterro foi muito mais emocionante.

Homem: Por que será?

Mulher: Que o enterro foi mais emocionante.

Homem: Só.

Mulher: A gente tava mais solto.

Homem: Ou vai ver foi a vítima.

Mulher: O morto.

Homem: Nesse caso, vítima.

Mulher: Era o quê mesmo, hein?

Homem: Bala perdida, eu acho.

Mulher: Sei.

Homem: Não. Assassinato. Parece que o garoto do enterro de hoje estava envolvido com o tráfico. Ele morreu com uma facada na jugular, uma injeção de ar veia e treze tiros na cabeça. A morte do outro enterro que a gente foi tinha sido acidente de carro. Tiro na cabeça é mais forte, né?

Mulher: Com certeza.

Homem: Então deve ser a causa da morte da vítima.

Mulher: É isso. Causa da morte conta.

Homem: Se conta!

Mulher: Causa da morte.

Homem: Justamente. Causa da morte.

Mulher: A causa da morte.

Homem: A da morte.

Mulher: Causa da morte

Homem: E o garoto também era novo.

Mulher: Claro, a idade.

Homem: A idade ajuda.

Mulher: Ajuda muito.

Homem: E como ajuda.

Mulher: Ajuda, ajuda.

Homem: Ô se ajuda!

Mulher: É muita ajuda.

Homem: Ajuda, ajuda.

Mulher: Ajuda.

Homem: Ajuda.

Mulher: Ajuda, ajuda.

Homem: A idade ajuda.

Mulher: Fica mais triste.

Homem: Muito mais.

Mulher: Dezenove anos.

Homem: Não, não. Dezessete.

Mulher: Ele era menor?!

Homem: Você não sabia?

Mulher: Se eu soubesse teria chorado o dobro.

Homem: No próximo eu não esqueço de te dizer a idade. É sempre bom checar antes do enterro.

Mulher: Merece um brinde.

Homem: Vamos brindar então.

Mulher: A quê?

Homem: Ao garoto.

Mulher: É muito mórbido.

Homem: Então a quê?

Mulher: À paz. Essa paz que vem depois do choro.

Homem: À paz, então. (tempo)

ELES BRINDAM. FICAM ALI UM POUQUINHO.

Mulher: Porque é que você tá fazendo isso?

Homem: O quê?

Mulher: Tudo. Por que é que você tá fazendo isso tudo?

Homem: Porque eu quero ser o melhor.

Mulher: O quê?

Homem: Por você.

Mulher: Como é que é?

Homem: Eu quero ser o melhor, por você.

Mulher: Eu não entendi.

Homem: No início a gente era, lembra? Parecia que o mundo e a gente era. Mas agora não é mais.

Mulher: Elas morrem.

Homem: Quem?

Mulher: As coisas morrem.

Homem: Eu não vou deixar. (pausa) Eu não controlo a umidade relativa do ar, a queda do copo, a minha vontade de açúcar nem o seu desejo por mim. Mas eu vou fazer tudo o que eu puder pra que a gente volte a ser. Tudo o que eu puder pra ser o melhor.

Mulher: E se não for?

Homem: Eu vou sofrer.

HOMEM TENTA BEIJAR MULHER. ELA SE DESVENCILHA. HOMEM SAI. MULHER FICA ALI.

Homem: Eu vou pegar mais champanhe.

HOMEM SAI. OUVIMOS O BARULHO DA TELEVISÃO. UM TELEVENDAS OU ALGO DO TIPO. HOMEM VOLTA. MULHER MEIO QUE NUM TRANSE.

Mulher: Sabe o que eu tava pensando?

Homem: Em como a gente se ama e devia ter um filho.

Mulher: (COMO SE FOSSE UMA VIOLÊNCIA) O quê???

Homem: Nada. No que é que você tava pensando?

Mulher: No choro grave.

Homem: O choro grave?

Mulher: Como é que deve ser o choro grave. Você acha muita loucura uma mini-entrevista.

Homem: O quê?

Mulher: Com uma das mães.

Homem: Você tá falando de chegar no meio do velório e perguntar pra uma senhora que chora o filho morto “e aí, o que é que você tá sentindo”?

Mulher: Não era dessa maneira.

Homem: Tem uma outra forma de saber.

Mulher: Como?

Homem: Chorando grave.

Mulher: Você acha que a gente consegue.

Homem: A gente consegue.

Mulher: A gente não consegue.

Homem: Eu acho que é uma questão de tempo.

Mulher: Como assim?

Homem: Quanto mais a gente for a enterro, mas a coisa vai ficando real.

Mulher: Você acha?

Homem: Vai deixando de ser teatro.

Mulher: Eu tenho dúvida.

Homem: Confia em mim. O que você sentiu hoje já não foi mais forte que no primeiro enterro?

Mulher: Foi.

Homem: Então.

Mulher: Mas teve uma hora quando o padre começou a dar sermão e eu me lembrei que tinha acabado o Ajax.

Homem: Hã?

Mulher: O produto de limpeza.

Homem: Entendi.

Mulher: Na hora do sermão do padre eu me lembrei que eu tinha que comprar Ajax.

Homem: A gente compra.

Mulher: Mas eu não queria, entende? Eu queria ter ficado dentro o tempo todo. Tava bom. A gente tava ali, abraçado, eu chorando no seu ombro. Tava tão de verdade.

Homem: Uma hora a gente vai conseguir ficar de verdade o tempo inteiro.

Mulher: Você acha?

Homem: Não vai mais ser teatro.

Mulher: Tomara. (pausa) Mas como é que a gente vai saber?

Homem: O quê?

Mulher: Quando parar de ser teatro e começar a ser real. Como é que a gente vai saber que atingiu o choro grave?

Homem: A gente pode criar um método.

Mulher: Um método.

Homem: Pra medir os nossos choros

Mulher: A gravidade do choro.

Homem: Isso.

Mulher: E como seria?

Homem: Com um gravador.

Mulher: Fala mais.

Homem: É bem simples, na verdade. Você grava a sua voz normal. Uma voz guia.

Mulher: Sei.

Homem: Depois descobre a frequência da voz. E compara com os nossos choros nos funerais.

Mulher: Os choros gravados nos funerais.

Homem: Isso. Comparando os choros com a frequência normal da nossa voz a gente tem uma escala de gravidade do pranto. É simples. Função de onda.

Mulher: Quase um problema.

Homem: Problema?

Mulher: De matemática, que você passa pros seus alunos.

Homem: Ah, é. Quase isso.

Mulher: Mas eu achei a idéia genial.

Homem: Você achou?

Mulher: Genial. Outro jovem cientista.

Homem: Hein?

Mulher: O prêmio jovem cientista.

Homem: Ah, tá. Eu não tenho mais idade pra ganhar.

ELES SORRIEM. QUASE SE APROXIMAM.

Homem: Você tá bem?

Mulher: Eu tô.

Homem: Que bom.

(PAUSA. SEDUZ)

Mulher: Eu acho que... eu tô começando.

Homem: Começando.

Mulher: A sentir vontade.

Homem: É?

Mulher: Eu to bem melhor.

Homem: Que bom.

Mulher: Muito melhor.

Homem: Bem bom.

Mulher: Meu amor.

Homem: Fala.

Mulher: Eu posso te pedir uma coisa?

Homem: O que você quiser.

Mulher: Me leva pro cemitério?

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