sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

OBITUÁRIO IDEAL – Cena 1

382716_10150613305433066_720623065_11792758_1580580536_n O barulho da serra some e vemos o homem cortando um enorme rosbife com uma faca elétrica. O barulho de uma televisão vem de uma única caixa. Ouvimos a seguinte notícia.

Voz do locutor: O braço de um recém-nascido foi encontrado nesta Segunda-feira na lata de lixo de uma loja de departamento em Realengo, Rio de Janeiro. O membro foi achado por uma menina de sete anos que acreditava ser parte de uma boneca. Segundo a perícia, o pequenino braço esquerdo pertencia a um bebê de cerca de dois meses. A polícia ainda não tem pistas sobre o caso.

(o volume abaixa)

Essa edição fica por aqui. Voltaremos mais tarde com o jornal da noite ou a qualquer momento com novas informações.

(entra programação normal)

Homem: Você quer mais?

Mulher: Não. (pausa) Por enquanto não.

Homem: Tem certeza?

Mulher: Acho que sim.

Homem: Eu posso saber por quê?

Mulher: O quê?

Homem: Eu perguntei por que você não quer mais.

Mulher: Eu não aguento.

Homem: Como não aguenta?

Mulher: É muito forte.

Homem: Sério?

Mulher: E muito cru.

Homem: Eu não achei tão cru.

Mulher: Eu não sabia que era tão cru.

Homem: Não é tão cru.

Mulher: O cheiro também...

Homem: O que é que tem o cheiro?

Mulher: Não me fez bem.

Homem: Você achou ruim?

Mulher: Me embrulhou o estômago um pouco...

Homem: Que loucura.

Mulher: Eu tenho ficado enjoada à toa.

Homem: Enjoada?

Mulher: É, eu tenho ficado enjoada à toa.

Homem: Você... Você acha que... Você tá... Você?

Mulher: Eu?

Homem: Enjoada à toa. Eu achei que de repente você tava, de repente você tava você.

Mulher: Como?

Homem: Ué. Como assim “como”?

Mulher: Como?

ELE TENTA PEGAR NA MÃO DELA. ELA SE DESVENCILHA E DERRUBA UM TALHER NO CHÃO.

Homem: Pelo menos tava gostoso.

Mulher: Oi?

Homem: Tirando o cheiro ruim, tava gostoso.

Mulher: Eu tô em dúvida.

Homem: Por quê?

Mulher: Eu já te disse, é muito cru.

Homem: E daí?

Mulher: E daí que fica frio.

Homem: Eu não acho.

Mulher: Eu queria uma coisa mais quente.

Homem: Não entendi.

Mulher: Menos cru, mais quente e mais real.

Homem: Era muito real.

Mulher: A gente tava encenando naquele cemitério!

Homem: Eu sofri de verdade!

Mulher: Era tudo muito frio, cru e pouco real.

Homem: Eu sofri de verdade.

Mulher: Você nem conhecia o morto!

Homem: Mas na hora eu senti.

Mulher: Eu também achei que fosse, mas depois eu fiquei pensando que era teatro.

Homem: Como teatro?

Mulher: A gente não tava sofrendo de verdade. Era como se a gente estivesse num teatro.

Homem: Eu até concordo que podia ter um pouco de teatro, mas também era real.

Mulher: Como é que pode ser teatro e real ao mesmo tempo?

Homem: Assim.

Mulher: Não me fez bem.

Homem: Nós fomos a um enterro, não dá pra ser chacrinha.

Mulher: Não precisava ser tão forte.

Homem: Foi pra isso que nós fomos.

Mulher: Eu sei...

Homem: E é por isso que é real.

Mulher: Eu fico na dúvida.

Homem: Eu tenho certeza.

Mulher: Eu fico na dúvida.

Homem: Você tava gostando.

Mulher: Eu não sei...

Homem: Foi bom pra nós dois.

Mulher: Pode ser.

Homem: Mesmo frio e cru.

Mulher: Você tem razão.

Homem: Você quer mais rosbife?

Mulher: Não, obrigada. Eu tô bem.

PAUSA. ELE TENTA BEIJAR A MULHER. ELA SE DESVENCILHA.

SILÊNCIO. ELE VOLTA A COMER.

Mulher: E você?

Homem: O quê?

Mulher: Como é que foi pra você?

Homem: Eu não entendi.

Mulher: Eu queria saber o que você sentiu.

Homem: Eu me senti vivo.

Mulher: Irônico.

Homem: O quê?

Mulher: Ir a um enterro pra se sentir vivo.

Homem: Não era essa a ideia?

Mulher: Alguma coisa.

Homem: Oi?

Mulher: A ideia era sentir alguma coisa. (SENSIBILIZADA) Qualquer coisa, na verdade.

Homem: Diferente.

Mulher: Qualquer coisa diferente daqui.

Homem: Qualquer coisa diferente daqui.

Mulher: Qualquer coisa diferente daqui.

Homem: E você sentiu?

Mulher: O quê?

Homem: Qualquer coisa diferente daqui.

Mulher: É difícil dizer.

Homem: Faz um esforço.

Mulher: Eu não consigo falar.

Homem: Para e pensa.

Mulher: Eu não sei.

Homem: É só dizer sim ou não.

Mulher: Eu acho que sim.

Homem: Você tem certeza que não quer mais rosbife?

SILÊNCIO.

Mulher: Não, obrigada.

ELE VOLTA A COMER.

Mulher: Muito vermelho.

Homem: O quê?

Mulher: O rosbife. Tá muito vermelho.

Homem: Não é a ideia?

Mulher: Eu não gosto. Da próxima vez eu vou deixar tostar mais.

Homem: Você vai matar o que é rosbife.

Mulher: O quê?

Homem: O rosbife é um assado de contrafilé ou lagarto que tem como característica ser cozido por fora e levemente cru por dentro. Ele deve ser servido frio geralmente acompanhado de salada de batatas. Frio e cru ele é rosbife. Quente e assado, ele vai passar a ser outra coisa. Ele vai deixar de ser um rosbife e pra ser um... bife. Se da próxima vez você tostar mais você vai matar o que é rosbife.

Mulher: Entendi.

Homem: Você tem certeza que não quer mais rosbife?

Mulher: Eu já disse que não.

Homem: E enterro?

Mulher: O quê que tem?

Homem: Você quer mais? Você quer ir a outro enterro?

Mulher: Eu não sei...

Homem: Mas foi tão bom.

Mulher: É que eu não sei se o que eu senti lá foi de verdade.

Homem: Por quê?

Mulher: Porque eu não conhecia o morto, porque eu não conhecia o morto e porque não doeu tanto.

Homem: Você sentiu.

Mulher: Eu fiquei confusa.

Homem: Eu vou te ajudar.

Mulher: O quê?

Homem: O que é que aconteceu?

Mulher: O que aconteceu?

Homem: No enterro. O que é que aconteceu no enterro?

Mulher: Eu chorei.

Homem: Você chorou.

Mulher: Eu chorei.

Homem: Que mais?

Mulher: Eu só chorei.

Homem: Só chorou?

Mulher: Eu chorei muito.

Homem: Foi muito choro.

Mulher: Muito choro.

Homem: Muito choro.

Mulher: Muito choro!

Homem: E como é que ele era?

Mulher: O choro.

Homem: Como é que era o choro?

Mulher: Era choro.

Homem: Lágrima, nariz, olho.

Mulher: Isso.

Homem: Tudo de verdade.

Mulher: O choro.

Homem: E o cheiro?

Mulher: O cheiro do choro?

Homem: Você disse que sentiu um cheiro ruim no enterro.

Mulher: Eu senti.

Homem: Verdade também.

Mulher: Era bem forte.

Homem: Como o corpo.

Mulher: O corpo do morto.

Homem: Você viu?

Mulher: Eu encostei!

Homem: Olha.

Mulher: Era bem frio.

Homem: Não era teatro.

Mulher: Frio e forte.

Homem: Olha.

Mulher: Frio, forte e cru.

Homem: Você tem certeza?

Mulher: Eu tenho.

Homem: E você tá bem?

Mulher: Eu to feliz.

Homem: Feliz?

Mulher: Tô mais que feliz.

Homem: Que bom.

Mulher: E em paz.

Homem: Que felicidade.

Mulher: Ganhei de volta.

Homem: A paz.

Mulher: Ganhei de volta a paz.

Homem: Que bom.

Mulher: Foi o melhor choro da minha vida.

Homem: Que felicidade.

Mulher: Mesmo não sendo tão real.

Homem: Que paz.

Mulher: Eu nunca me senti tão bem.

Homem: Felicidade e paz.

Mulher: E eu quero ir de novo.

Homem: Aqui seu rosbife.

B. O.

Entra LAST NIGHT I DREAMT THAT SOMEBODY LOVED ME – THE SMITHS

Ela de repente fica mais baixa e vindo de um único lugar: a televisão. A música para e ouvimos a vinheta de um jornal:

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