sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

OBITUÁRIO IDEAL – Cena 3

IMG_1386-copy_foto_paula_kossatz_press-520x346  ENTRA “POUR QUE L´AMOUR ME QUITTE” DE CAMILLE. A MÚSICA VAI BAIXANDO ATÉ IR PARA A TV. ENTRA NOTÍCIA.

Voz do locutor: Locutor de TV: Foram encontrados nesta Quarta-feira os ossos do pé direito da namorada do jogador de basquete americano Parker James. Os restos do membro foram achados atrás de uma escola primária no subúrbio de Columbine. Muito abalado, o jogador disse que não vai se pronunciar sobre o caso. Segundo acusações, Parker teria sido o mandante do crime e o corpo da mulher teria desaparecido porque seus restos mortais foram comidos por um cachorro.

HOMEM ENTRANDO.

Homem: Oi meu amor.

Mulher: Onde é que você tava?

Homem: Como, onde eu tava, no colégio.

Mulher: Dando aula?

Homem: Não. Velando os corpos dos alunos que morreram num massacre.

Mulher: Sério?

Homem: Claro que não! Você acha que a gente mora nos Estados Unidos?

Mulher: Estados Unidos?

Homem: Ah é, já teve isso aqui também.

Mulher: Por que é que você chegou tão tarde?

Homem: Fecharam o túnel de novo.

Mulher: Ocupação na rocinha?

Homem: Criança atropelada.

Mulher: Ela morreu?

Homem: Não.

Mulher: Droga.

Homem: Que foi?

Mulher: A gente não vai conseguir chegar a tempo no cemitério.

Homem: Não é minha culpa.

Mulher: Você chegou muito atrasado.

Homem: Eu não posso pedir dispensa do trabalho pra ir ao cemitério.

Mulher: Você fez isso mês passado.

Homem: Foi o enterro da minha vó!

Mulher: Ninguém precisa saber que você não conhece o morto.

Homem: Desculpa, meu amor, mas acho melhor a gente deixar pro fim de semana.

Mulher: Fim de semana é muito longe! Eu fiquei o dia inteiro sonhando com um velóriozinho no Caju.

Homem: Você não foi trabalhar?

Mulher: Eu não ia hoje, lembra. Eu tinha consulta com aquele médico.

Homem: Ah. (pausa) E como é que foi?

Mulher: Eu não fui.

Homem: Por quê?

Mulher: Não tive vontade.

Homem: Você sabe como essa consulta era importante.

Mulher: Eu sei... Mas eu não tive vontade. Eu não... tive vontade.

Homem: Você quer que eu vá com você?

Mulher: Não precisa.

Homem: Se você quiser eu posso ir.

Mulher: Não precisa.

Homem: Esse médico é muito importante você pode tar com/

Mulher: Eu já disse que não precisa!

SILÊNCIO. ENTRA UMA RISADA DE CLAQUE NA TELEVISÃO.

Homem: Você ainda tem medicamento?

Mulher: O quê?

Homem: Eu perguntei se você ainda tem medicamento.

Mulher: Tenho. Ainda tenho.

Homem: Quando acabar me fala. Eu consigo mais pra você.

Mulher: Pode deixar.

Homem: Mas você não pode ficar tomando isso sem saber se/

Mulher: Eu vou preparar o seu jantar.

ELE VAI SAIR E PARA.

Homem: Tenta remarcar a consulta.

SILÊNCIO

Homem: É muito importante. Não só pelo óbvio. Mas pra saber se a gente.

SILÊNCIO

Homem: Você sabe que o meu maior sonho é ter um filho com voc/

Mulher: Eu vou tentar.

Homem: Que bom que você vai tentar.

SILÊNCIO. ELE NEM TENTA MAIS SE APROXIMAR. HOMEM VAI SAINDO.

Mulher: Como é que foi hoje?

Homem: Como é que foi o quê?

Mulher: Na escola. Como é que foi lá na escola hoje?

Homem: Na escola?

Mulher: Você não tava dando aula?

Homem: Tava... É... A minha aula foi boa. Hoje foi resultado de prova. A média foi surpreendente. Eu fiquei muito feliz.

Mulher: Ficou?

Homem: A minha turma teve a maior média da escola. E equação de segundo grau não é pudim.

MULHER LONGE. DEMORA UM TEMPO PRA RESPONDER.

Mulher: Que bom.

HOMEM TENTA SE APROXIMA DA MULHER, ELA SE DESVENCILHA. FICA UM CLIMA TENSO E ELA MANDA:

Mulher: Eu acabei não descongelando a carne.

Homem: Não tem problema.

Mulher: Eu fiquei tão, sei lá, passei a tarde tão que e eu acabei não.

Homem: Eu já disse que não tem problema.

Mulher: Eu posso fazer uma massa se você quiser.

Homem: Eu acho ótimo.

Mulher: Só que não tem macarrão integral.

Homem: Não tem?

Mulher: Eu me esqueci totalmente.

Homem: Eu também tinha ficado de comprar.

Mulher: E não dá mais pra comer o de farinha branca.

Homem: Não dá.

Mulher: É um veneno!

Homem: A cola!

Mulher: Pois é, menino, a cola.

Homem: Sabia que eu passei na biblioteca lá da escola outro dia e eles tavam recuperando uns livros antigos...

Mulher: É mesmo?

Homem: Com cola de farinha branca?

Mulher: Mentira?

Homem: Não pode pôr espiral porque descaracteriza o clássico do livro.

Mulher: Claro, o clássico.

Homem: Então eles tavam colando à moda antiga.

Mulher: Com cola de farinha branca.

Homem: Duas xícaras de água filtrada, duas colheres de sopa de farinha de trigo e uma colher de sopa de vinagre.

Mulher: Que absurdo!

Homem: Você ferve a água, mistura a farinha e depois leva tudo de volta ao fogo brando e fica mexendo por dez minutos até ficar um mingau.

Mulher: Eu não acredito.

Homem: Depois você desliga o fogo, acrescenta a colher de vinagre e tá pronta a cola!

Mulher: Nossa!

Homem: Agora imagina: se farinha branca e água fazem cola o que é que o macarrão comum não faz com o nosso corpo?

Mulher: Eu não gosto nem de imaginar.

Homem: É um horror!

Mulher: Fortíssimo!

Homem: Descabido.

Mulher: Uma violência.

Homem: Tão brutal quanto a gordura trans!

TEMPO.

Mulher: A gente pode ligar e pedir um sanduíche então. (tempo) No pão integral, claro.

Homem: Isso, no pão integral.

TEMPO

Homem: Eu prometo pra você que a gente vai a um enterro.

Mulher: Ai, promete?

Homem: Vai te deixar feliz?

Mulher: Vai.

Homem: Então eu te levo a todos os enterros do mundo.

Mulher: Essa foi a coisa mais bonita que você disse pra mim. (PAUSA) É que é diferente, sabe? O que eu tenho sentido durante o enterro. Tem sido uma experiência. Você sabe. É uma experiência.

Homem: Eu sei.

Mulher: No último velório. Do menino com a facada no coração, a injeção de ar na veia e os doze tiros na cabeça.

Homem: Treze.

Mulher: Isso, treze. Lembra a hora que a mãe chegou?

Homem: A gente já tava na capela. Escondido ali no canto.

Mulher: Quando ela chegou e foi até o caixão. Quando ela viu o filho morto pela primeira vez.

Homem: Eu sei.

Mulher: Foi muito forte. Muito forte. Era uma descarga de energia tão grande em forma de choro. Era mais que um choro. Era mais que qualquer coisa, na verdade. Era amor.

Homem: Amor?

Mulher: Só amor. Amor puro.

Homem: O rapaz tava morto. Não podia mais ser amor. Amor tem que ser entre du/

Mulher: Era sim. O amor por um morto é o mais verdadeiro. Porque quem ama não tem como receber nada em troca.

Homem: Eu vou tomar banho.

HOMEM VAI SAIR. MULHER O CHAMA.

Mulher: Você.

Homem: Eu o quê?

Mulher: Você nunca falou nada.

Homem: Eu falei um monte sobre a farinha branca!

Mulher: Eu tô falando dos enterros.

Homem: Ah, tá, dos enterros.

Mulher: Você nunca falou nada. (TEMPO) Qual é a hora que você mais gosta?

Homem: A hora da descida. Eu gosto mais da hora da descida.

Mulher: A hora da descida?

Homem: Quando o caixão desce pra cova.

Mulher: Por quê?

Homem: Porque é quando você me abraça.

ENTRA MÚSICA. MULHER BEIJA O HOMEM.

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