quinta-feira, 1 de março de 2012

OBITUÁRIO IDEAL –Cena 6

IMG_2351_foto_paula_kossatz_press  Voz do locutor: Uma criança morreu hoje depois de ter sido arrastada por um carro em movimento por dois quarteirões, na cidade de Chernobyl, na Rússia. A menina de apenas sete anos ficou pendurada pelo cinto de segurança do lado de fora do veículo, que tinha sido roubado. Restos do corpo incluindo as pontas dos traços da perna esquerda foram achados no caminho. A polícia agora trabalha na captura dos bandidos com a ajuda da população para dar fim à tragédia de Chernobyl.

OS DOIS ENTRAM EM CENA COM AS MALAS.

Mulher: Esse foi o melhor enterro da minha vida.

Homem: Taí uma frase que eu achei que eu nunca fosse escutar.

Mulher: Eram muitos.

Homem: Tipos de choro?

Mulher: Mortos. Eram muitos mortos. Aquele bando de mãe chorando. Nunca imaginei que fosse tão forte.

Homem: Era muito forte.

Mulher: E em espanhol fica tudo ainda mais dramático!

Homem: Não tem mais nada nessa casa.

Mulher: Mi hijo, cariño, mi amor!

Homem: Absolutamente nada.

Mulher: Engraçado que mesmo sendo em espanhol eu entendi tudo.

Homem: A gente precisa fazer compra.

Mulher: É por um outro lugar, mas eu entendi.

Homem: Acho que não tem mais uma peça de carne.

Mulher: E senti também, que é o grande lance.

Homem: Vou ver se eu compro pra manhã.

Mulher: O cortejo foi um escândalo.

Homem: Picanha, de repente.

Mulher: Cada caixão mais lindo que o outro.

Homem: Ou maminha

Mulher: A mães choraram muito grave.

Homem: Talvez alcatra.

Mulher: Você conseguiu?

Homem: Acém.

Mulher: O quê?

Homem: Hã?

Mulher: Oi.

Homem: Hein?

Mulher: Eu perguntei se você conseguiu. O choro grave.

Homem: Acho que não.

Mulher: Eu também não. Mas mesmo assim eu brilhei.

Homem: No choro?

Mulher: Brilhei no choro. Foi tão forte, tão violento, tão real.

Homem: Você brilhou.

Mulher: Tirando as mães ninguém ali sofria mais que eu.

Homem: É, não sofria.

Mulher: Você acha mesmo?

Homem: Acho.

Mulher: De verdade?

Homem: Acho.

Mulher: Duvido.

Homem: Eu não reparei muito nas outras. Você sabe que eu só tenho olhos pro seu choro.

Mulher: Mentiroso.

Homem: Juro.

Mulher: Teve uma hora que eu bem vi você se emocionando com aquela ruiva de vestido cotelê.

Homem: Que bobagem.

Mulher: Admite. Eu não vou irritada.

Homem: Tá bom, eu me emocionei um pouquinho.

Mulher: Sabia.

Homem: Mas é que o choro dela era muito forte.

Mulher: Aquilo lá é profissional.

Homem: Será?

Mulher: Carpideira.

Homem: Eu nem reparei.

Mulher: Tava escrito na testa.

Homem: Pode ser.

Mulher: Eu reconheço a léguas.

Homem: Esquece essa ruiva de vestido cotelê.

PAUSA.

Mulher: (LEMBRANÇA DOCE) Meu amor.

Homem: O quê?

Mulher: Vozes.

Homem: Hein???

Mulher: A gente se esqueceu de gravar as vozes.

Homem: Pra medição.

Mulher: Dos nossos choros.

Homem: A gente se esqueceu de gravar as vozes pra medição dos nossos choros.

Mulher: Tão importante!

Homem: Não tem problema.

Mulher: Mas é muito.

Homem: A gente grava.

Mulher: Agora.

Homem: Pode ser.

Mulher: Cadê o gravador?

Homem: Na mala, eu acho.

HOMEM VAI PEGAR.

Mulher: Eu tirei uma fotos sensacionais.

Homem: É.

Mulher: Tem uma aqui pelo ângulo que parece que uma das mortas tá de olho aberto.

Homem: Que bom.

Mulher: Depois você me ajuda a descarregar.

Homem: Claro.

Mulher: Você tá tão bonito.

Homem: Hein?

Mulher: Seu corpo, mais forte. De repente eu volto a malhar.

Homem: O que é que você falou?

Mulher: Que eu tô pensando em voltar pra academia.

Homem: Não, antes. O que é que você falou antes.

Mulher: Do seu corpo.

Homem: Disso.

Mulher: O quê?

Homem: Antes disso.

Mulher: Eu falei que você tava bonito.

Homem: Você achou.

Mulher: Achei. (PAUSA) Muito bonito.

O HOMEM APERTA O GRAVADOR DE EMOÇÃO (CAFONA) E ENTRA O SOM DE UM CHORO GRAVE DESESPERADO.

Homem: É o de uma das mães.

Mulher: É lindo.

Homem: É forte.

Mulher: É lindo. Como é que faz pra sentir isso, meu Deus?

Homem: Maria/

Mulher: Vamo gravar as nossas vozes.

ELA PEGA O GRAVADOR E COMEÇA A VOLTAR.

Homem: O que é que você tá fazendo?

Mulher: Achando um ponto pra não gravar em cima dos choros.

Homem: Das mães.

Mulher: Dos nossos. A gente tem que comparar, né?

Homem: É. A gente tem.

ELA DÁ PLAY E OUVE SEU PRÓPRIO CHORO.

Mulher: Aqui tá bom.

Homem: Mas esse é o seu choro.

Mulher: Mas não é do enterro.

Homem: É de quando?

Mulher: De antes.

Homem: De outro enterro?

Mulher: Daqui de casa.

Homem: Você tava ensaiando?

Mulher: Pra não desperdiçar o momento.

Homem: O choro grave vem justamente do não preparo.

Mulher: Mas algum esforço tem que ter. A gente ainda não conhece os mortos.

Homem: É. A gente ainda (pausa) não conhece os mortos.

Mulher: Como é que vai ser?

Homem: Como assim?

Mulher: A medição dos choros.

Homem: Eu já te disse. Eu vou tirar a frequência normal da voz e comparar com os choros de acordo com a função de onda. Depois eu converto faço uma escala de medição de 1 a 10. Sendo um o choro mais grave e dez o mais agudo.

Mulher: Não pode ser o contrário?

Homem: O 1 mais agudo e o 10 sendo mais grave.

Mulher: É.

Homem: Pode. Por quê?

Mulher: Vou ser sua aluna nota dez.

Homem ri.

Mulher: Então o que é que eu tenho que fazer.

Homem: Vamo gravar.

Mulher: Eu falo o quê?

Homem: Você pode falar qualquer coisa, desde que seja neutro.

Mulher: Neutro?

Homem: Sem emoção.

Mulher: Entendi.

HOMEM APERTA O REC.

Mulher: Já tá gravando?

Homem: Já.

Mulher: Tá gravando?

Homem: Já!

Mulher: Ai, meu Deus.

Homem: O que foi?

Mulher: Eu fiquei meio surpresa.

Homem: Tem que ser sem emoção.

Mulher: Ai, mas eu não sei o que falar.

Homem: Fala qualquer coisa.

Mulher: Como assim qualquer coisa?

Homem: Qualquer coisa, só tem que ser neutro.

Mulher: Mas falar o quê?

Homem: Fala batatinha quando nasce.

Mulher: Mas eu não sei batatinha quando nasce.

Homem: Todo mundo sabe batatinha quando nasce.

Mulher: Ai, meu Deus.

Homem: Fala logo senão vai gravar em cima do enterro.

Mulher: Ai, que pressão. Peraí. Deixa eu ver se eu me lembro... Ai, como é que era? (PAUSA) Ih, tá ouvindo? Essa música que tá tocando é tão bonita que faz a gente querer ficar vivo. Mas vai chegar um tempo em que a gente vai ter ido embora. A gente vai ser esquecido. Os nossos rostos, as nossas vozes e tudo o que a gente fez vai ser esquecido. Mas o nosso sofrimento vai ser transformado em felicidade pra quem vier depois. E quando isso acontecer vão lembrar da gente com muito amor. É por isso que eu acredito que logo, logo a gente vai saber porque a gente vive. E o porquê de tanto sofrimento. A gente vai saber porquê. A gente vai saber porquê. (PAUSA) Foi sem emoção?

Homem: Foi. Sem emoção.

Mulher: Nossa, eu nem acredito que eu me lembrei disso tudo.

Homem: O quê que é?

Mulher: Era a fala de uma peça que eu fiz quando eu era mais nova.

Homem: Era teatro?

Mulher: Era teatro. (pausa) E agora?

Homem: Agora eu preciso passar as gravações pro computador. E fazer as contas.

Mulher: Pra medir a falta.

Homem: O quê?

Mulher: Pra medir o quanto falta. Pra chegar ao choro perfeito.

Homem: Isso. Pra medir isso.

Mulher: Eu vou descansar

Homem: Vai. Amanhã você tem que tar no hospital cedo. Eu dou aula. Recomeça a vida, né?

Mulher: É.

Homem: E você tem o médico.

Mulher: Eu sei.

Homem: Você vai.

Mulher: Eu vou.

OS DOIS SE LEVANTAM.

Mulher: Eu queria muito chorar grave. Eu queria sentir como é.

Homem: Uma hora você consegue.

ELA VAI SAINDO.

Homem: Eu te amo.

Mulher: O quê?

Homem: Eu te amo.

Mulher: O quê?

Homem: Eu vou comprar carne.

Mulher: Vê se não demora.

Homem: Pode deixar que eu não vou demorar.

ENTRA MÚSICA.

Nenhum comentário: