sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Hélio

Uma jovem de uns 25 e um homem de uns 50. Os dois sozinhos num ponto de ônibus da Urca. A jovem parece preocupada.

(A cena pode ser feita por outras duas pessoas de qualquer idade, qualquer sexo, com pequenas adaptações)

JOVEM: Dá licença. Você tem horas?

HOMEM: Se eu tenho horas?

JOVEM: Isso.

HOMEM: Em que sentido?

JOVEM: No sentido de saber que horas são.

HOMEM: No Brasil?

JOVEM: É.

HOMEM: Em qual fuso?

JOVEM: Olha, deixa pra lá.

HOMEM: Não, não. Responde. Eu estou querendo te ajudar.

JOVEM: Não parece.

HOMEM: Por que eu não adivinhei de que parte do mundo você quer saber as horas?

JOVEM: Porque você não me disse que horas são.

HOMEM: Mas como é que eu posso te dizer que horas são se você não me disse a localização do globo cujo horário você quer saber?

JOVEM: Olha…

HOMEM: Eu não sei se você sabe, mocinha, mas a hora muda de unidade em unidade à medida que avançamos quinze graus na longitude terrestre para a esquerda ou para a direita. No caso, mais para o leste, menos para oeste.

JOVEM: Tudo bem…

HOMEM: E eu também não sei se você sabe, mas existem exatamente vinte e quatro dessas divisões pelo globo.

JOVEM: Tá legal, eu já…

HOMEM: E que dessas vinte e quatro divisões, três estão no Brasil.

JOVEM: Eu…

HOMEM: Portanto, a menos que você me diga a exata localização da faixa longitudinal da qual você quer saber o horário eu não tenho como te dizer que horas são.

Ela dá um sorriso amarelo para ele e olha pra frente.

tempo

HOMEM: Ainda quer saber as horas?

JOVEM: Não. Obrigada.

tempo

HOMEM: Como é o seu nome?

JOVEM: Pra que você quer saber?

HOMEM: É que desde o surgimento da fala no período Neolítico…

JOVEM: Tá bom, tá bom, tá bom. Meu nome é Ramona.

HOMEM: Ramona! Que interessante! Ramona é o nome do meu abajur.

JOVEM: Seu abajur?

HOMEM: Da sala. O do quarto é Dorotéia.

JOVEM: Como é que é?

HOMEM: É que a Dorotéia é mais velha.

JOVEM: Hein?

HOMEM: Sempre achei que Dorotéia fosse um nome mais antigo.

JOVEM: Você dá nome pros seus abajurs?

HOMEM: A-ba-ju-RES.

JOVEM: Que seja. Você dá nome pros seus abajures?

HOMEM: Claro.

JOVEM: Ah, claro. É muito óbvio mesmo. Eu por exemplo sempre nomeio as minhas facas.

HOMEM: Você também!

JOVEM: Eu não acredito.

HOMEM: Que bom. As minhas são Viviana, Roberta, Maura e Denise. Tem também a Kátia. Mas ela, coitada, já tá meio cega.

JOVEM: Quem?

HOMEM: A Kátia. Minha faca de churrasco que tá cega.

JOVEM: Você tá falando sério?

HOMEM: To, menina. Ela tá cega mesmo!

JOVEM: Posso te fazer uma pergunta?

HOMEM: No caso, outra.

JOVEM: Pra que é que você dá nome aos seus abajurs…

HOMEM: A-ba-ju-RES!

JOVEM: Aos seus ABAJURES e às suas facas?

HOMEM: Pelo mesmo motivo que a sua mãe te deu o seu.

JOVEM: Eu não entendi muito bem.

HOMEM: Já imaginou se você não tivesse nome? A confusão que ia ser?

JOVEM: E daí?

HOMEM: E daí que é a mesma coisa com as facas! Imagina. Era capaz de eu almoçar, por exemplo com a Maura e o Teodoro…

JOVEM: Teodoro?

HOMEM: Um dos garfos. Enfim. Era capaz de eu almoçar com a Maura e Teodoro, jantar com Roberta e Cristiano e nem me dar conta da diferença. Olha que loucura.

JOVEM: É. Uma loucura mesmo.

HOMEM: Nem me fale…

JOVEM: Bom, pelo que eu to vendo tudo na sua casa tem nome.

HOMEM: Claro.

JOVEM: Tapete…

HOMEM:Cor do texto Antônio.

JOVEM: Televisão…

HOMEM: Valter.

JOVEM: Mesa de cabeceira…

HOMEM: A Glorinha!

JOVEM: E pia…

HOMEM: Essa é Pia mesmo.

JOVEM: Entendi.

HOMEM: Pura coincidência. É que ela tem cara de Pia, sabe?

JOVEM: Sei. E você provavelmente conversa.

HOMEM: Conversar.

JOVEM: Com a televisão…

HOMEM: Por favor… Valter.

JOVEM: Como o Valter, o Antônio, a Glorinha… A Pia…

HOMEM: E por que não conversaria? Eles só não me respondem.

JOVEM: Meu Deus.

HOMEM: O que foi, Ramona?

JOVEM: Nada não.

HOMEM: Fala!

JOVEM: Muito triste.

HOMEM: Triste? O que é triste?

JOVEM: Você! Isso que você faz. Patético.

HOMEM: Você acha? Engraçado. Eu acho o contrário.

JOVEM: O quê?

HOMEM: Eu acho que triste é o contrário.

JOVEM: Como assim o contrário?

HOMEM: Acho triste alguém que acredita que a palavra “faca” substitui todas as facas que existem. Alguém que se dá por satisfeito em almoçar sem se importar com cada detalhe do que está fazendo. E acho mais triste ainda alguém que só consegue dar bom dia se for receber uma resposta. Isso, Ramona, eu realmente acho triste.

JOVEM: Você é maluco, né?

HOMEM: Também acho triste. Chamar o que é diferente da gente de maluco. Olha, Ramona, eu vivo muito bem do jeito que eu sou. Muito mesmo. E ter a capacidade de acordar bem dando bom dia pro Valter e manter o bom humor desde cedo contando uma piada pro Timóteo (que no caso é o meu aparelho de barbear) não é triste não. Nem patético. É ser feliz. E ter imaginação e disponibilidade pra ser feliz. Mesmo que eu não tenha ninguém. Meio brega, né? Mas é o que é.

A jovem fica olhando para o homem sem entender. Ela se levanta, faz sinal para o ônibus. Ao dar o primeiro passo como se fosse subir, o homem interrompe.

HOMEM: Ramona!

Ela se vira para ele.

HOMEM: São nove horas.

Ela sorri.

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