Uma jovem de uns 25 e um homem de uns 50. Os dois sozinhos num ponto de ônibus da Urca. A jovem parece preocupada.
(A cena pode ser feita por outras duas pessoas de qualquer idade, qualquer sexo, com pequenas adaptações)
JOVEM: Dá licença. Você tem horas?
HOMEM: Se eu tenho horas?
JOVEM: Isso.
HOMEM: Em que sentido?
JOVEM: No sentido de saber que horas são.
HOMEM: No Brasil?
JOVEM: É.
HOMEM: Em qual fuso?
JOVEM: Olha, deixa pra lá.
HOMEM: Não, não. Responde. Eu estou querendo te ajudar.
JOVEM: Não parece.
HOMEM: Por que eu não adivinhei de que parte do mundo você quer saber as horas?
JOVEM: Porque você não me disse que horas são.
HOMEM: Mas como é que eu posso te dizer que horas são se você não me disse a localização do globo cujo horário você quer saber?
JOVEM: Olha…
HOMEM: Eu não sei se você sabe, mocinha, mas a hora muda de unidade em unidade à medida que avançamos quinze graus na longitude terrestre para a esquerda ou para a direita. No caso, mais para o leste, menos para oeste.
JOVEM: Tudo bem…
HOMEM: E eu também não sei se você sabe, mas existem exatamente vinte e quatro dessas divisões pelo globo.
JOVEM: Tá legal, eu já…
HOMEM: E que dessas vinte e quatro divisões, três estão no Brasil.
JOVEM: Eu…
HOMEM: Portanto, a menos que você me diga a exata localização da faixa longitudinal da qual você quer saber o horário eu não tenho como te dizer que horas são.
Ela dá um sorriso amarelo para ele e olha pra frente.
tempo
HOMEM: Ainda quer saber as horas?
JOVEM: Não. Obrigada.
tempo
HOMEM: Como é o seu nome?
JOVEM: Pra que você quer saber?
HOMEM: É que desde o surgimento da fala no período Neolítico…
JOVEM: Tá bom, tá bom, tá bom. Meu nome é Ramona.
HOMEM: Ramona! Que interessante! Ramona é o nome do meu abajur.
JOVEM: Seu abajur?
HOMEM: Da sala. O do quarto é Dorotéia.
JOVEM: Como é que é?
HOMEM: É que a Dorotéia é mais velha.
JOVEM: Hein?
HOMEM: Sempre achei que Dorotéia fosse um nome mais antigo.
JOVEM: Você dá nome pros seus abajurs?
HOMEM: A-ba-ju-RES.
JOVEM: Que seja. Você dá nome pros seus abajures?
HOMEM: Claro.
JOVEM: Ah, claro. É muito óbvio mesmo. Eu por exemplo sempre nomeio as minhas facas.
HOMEM: Você também!
JOVEM: Eu não acredito.
HOMEM: Que bom. As minhas são Viviana, Roberta, Maura e Denise. Tem também a Kátia. Mas ela, coitada, já tá meio cega.
JOVEM: Quem?
HOMEM: A Kátia. Minha faca de churrasco que tá cega.
JOVEM: Você tá falando sério?
HOMEM: To, menina. Ela tá cega mesmo!
JOVEM: Posso te fazer uma pergunta?
HOMEM: No caso, outra.
JOVEM: Pra que é que você dá nome aos seus abajurs…
HOMEM: A-ba-ju-RES!
JOVEM: Aos seus ABAJURES e às suas facas?
HOMEM: Pelo mesmo motivo que a sua mãe te deu o seu.
JOVEM: Eu não entendi muito bem.
HOMEM: Já imaginou se você não tivesse nome? A confusão que ia ser?
JOVEM: E daí?
HOMEM: E daí que é a mesma coisa com as facas! Imagina. Era capaz de eu almoçar, por exemplo com a Maura e o Teodoro…
JOVEM: Teodoro?
HOMEM: Um dos garfos. Enfim. Era capaz de eu almoçar com a Maura e Teodoro, jantar com Roberta e Cristiano e nem me dar conta da diferença. Olha que loucura.
JOVEM: É. Uma loucura mesmo.
HOMEM: Nem me fale…
JOVEM: Bom, pelo que eu to vendo tudo na sua casa tem nome.
HOMEM: Claro.
JOVEM: Tapete…
HOMEM: Antônio.
JOVEM: Televisão…
HOMEM: Valter.
JOVEM: Mesa de cabeceira…
HOMEM: A Glorinha!
JOVEM: E pia…
HOMEM: Essa é Pia mesmo.
JOVEM: Entendi.
HOMEM: Pura coincidência. É que ela tem cara de Pia, sabe?
JOVEM: Sei. E você provavelmente conversa.
HOMEM: Conversar.
JOVEM: Com a televisão…
HOMEM: Por favor… Valter.
JOVEM: Como o Valter, o Antônio, a Glorinha… A Pia…
HOMEM: E por que não conversaria? Eles só não me respondem.
JOVEM: Meu Deus.
HOMEM: O que foi, Ramona?
JOVEM: Nada não.
HOMEM: Fala!
JOVEM: Muito triste.
HOMEM: Triste? O que é triste?
JOVEM: Você! Isso que você faz. Patético.
HOMEM: Você acha? Engraçado. Eu acho o contrário.
JOVEM: O quê?
HOMEM: Eu acho que triste é o contrário.
JOVEM: Como assim o contrário?
HOMEM: Acho triste alguém que acredita que a palavra “faca” substitui todas as facas que existem. Alguém que se dá por satisfeito em almoçar sem se importar com cada detalhe do que está fazendo. E acho mais triste ainda alguém que só consegue dar bom dia se for receber uma resposta. Isso, Ramona, eu realmente acho triste.
JOVEM: Você é maluco, né?
HOMEM: Também acho triste. Chamar o que é diferente da gente de maluco. Olha, Ramona, eu vivo muito bem do jeito que eu sou. Muito mesmo. E ter a capacidade de acordar bem dando bom dia pro Valter e manter o bom humor desde cedo contando uma piada pro Timóteo (que no caso é o meu aparelho de barbear) não é triste não. Nem patético. É ser feliz. E ter imaginação e disponibilidade pra ser feliz. Mesmo que eu não tenha ninguém. Meio brega, né? Mas é o que é.
A jovem fica olhando para o homem sem entender. Ela se levanta, faz sinal para o ônibus. Ao dar o primeiro passo como se fosse subir, o homem interrompe.
HOMEM: Ramona!
Ela se vira para ele.
HOMEM: São nove horas.
Ela sorri.
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