sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Idas e vindas

Personagens:

Nádia: Quarenta anos, solteira. Se veste sobriamente e se comporta como uma senhora.

Diná: Oitenta anos, solteira. Se veste como uma típica senhora de Copacabana.

Um apartamento cheio de caixas, com alguns móveis já desembalados, todos meio antigos. Toca o telefone.

Nádia: Já vai. Já vai! Alô… Não! Pela décima vez, eu já disse que não tem nenhuma Maria de Lourdes! Desliga. Que maçada!

Toca de novo.

Nádia: Mas será o Benedito? (Atende) Escuta aqui, seu mequetrefe, se você continuar ligando pra cá eu vou lhe passar uma carraspana que vai fazer você se arrepender de ter saído do útero da sua mãe no infeliz dia do seu nascimento! (pausa). Oi tia. Desculpa. Não, tia. Não tem nada de errado com o útero da vovó não, é que eu achei que fosse outra pessoa. Tia… Tia, eu já disse que não tem nada com o útero da vovó, até porque ele já não existe há mais de dezessete anos! O quê? Ta, ta tudo bem. To só um pouco cansada com essa mudança. Não tenho mais idade pra isso não. Se o prédio é bonito? É meio bocomoco, mas a gente se acostuma, né? Pelo menos o apartamento é bom e eu consegui me livrar daqueles arruaceiros lá da Ronald de Carvalho. (Numa crescente irritação) Ai, finalmente. Aquele lugar parecia uma selva! Era britadeira de dia, batucada de tarde, boogie woogie de noite e bengalafumenga a madrugada inteira. Olha, se eu não saísse dali por espontânea vontade, sairia algemada por assassinato em primeiro grau seguido de esquartejamento!!! (pausa) Eu to calma tia, eu to calma! Eu só preciso descansar um pouco. E agora as coisas vão melhorar. Paz e silêncio. É tudo o que eu preciso pra me recuperar do estresse e voltar a escrever.

Entra um funk em volume altíssimo!

Nádia: Ai, minha Santa Genoveva, eu não acredito. Tia, eu te ligo depois. Eu acho que a Ronald de Carvalho inteira ficou com saudades e resolveu me dar uma festa de boas vindas em cima da minha cabeça!

Nádia interfona para a portaria.

Nádia: Seu José, o senhor poderia pedir para o rapaz do 304 abaixar o som? Ah… não é rapaz? Então pede para essa mocinha… Ah… Não é mocinha? (Grossa) Então pede para esse traveco tirar essa música horrorosa, antes que os meus tímpanos sofram uma ruptura irreversível!

Nádia desliga na cara do porteiro. O som some por um tempo. Nádia faz cara de alívio. Daqui a pouco o som volta à toda.

Liga de novo.

Nádia: Seu José! Pediu? E ela disse o quê? Não entendeu? É uma traveca surda por acaso? Fala com a síndica! Ela é a síndica? Onde é que eu fui amarrar o meu bode? Me disseram que essa era um prédio tranqüilo. De idosos. Escuta aqui, seu José, o senhor fala de novo ou eu não respondo por mim!

A música pára de novo. Nádia senta aliviada. Ouvimos agora um som de móveis se arrastando.

Nádia: Só pode ser piada.

Interfona.

Nádia: Seu José! Pede para essa maluca mudar os móveis de lugar numa hora apropriada! No meu relógio já são dez e três da noite. E caso ela não saiba, a lei do silêncio começa a vigorar ás dez! Não é dez e um, nem dez e dois, nem dez e três. É às dez! O senhor me faça o favor de interfonar agora, senão eu vou pessoalmente enfiar uma batedeira no ouvido dela!

Ela desliga. O barulho pára. Passam-se alguns segundos. Ouvimos o barulho de batidas no chão.

Nádia: Ah, não. Estão abusando da minha boa educação. Será que eu vou até ter que arrumar um charivari logo no meu primeiro dia nesse prédio? É o fim da picada.

Nádia batendo à porta de Diná. Diná abre. É uma senhora meiga com um rostinho ingênuo. Nádia olha para a senhora e para dentro de sua casa.

Diná: Pois não?

Nádia: Eu acho que eu toquei errado. Desculpe eu devo ter acordado a senhora.

Diná: No problems, querida. (e fecha a porta)

Nádia dá um passo e o barulho volta. Ela olha em volta. Se dá conta de que o barulho vem do apartamento de Diná mesmo. Toca novamente.

Diná: (Simpática) Errado de novo?

Nádia: Esse aqui não é o 304?

Diná: Até hoje sim!

Nádia: A senhora…

Diná: “Você”, querida. Por favor, me chame de você. Meu nome é Diná.

Nádia: A senhora mora sozinha?

Diná: (Olhando para dentro e vê seu aquário) Não. Moro com a Gilda…

Nádia: Ah, então ta explicado. A senhora pede, por favor, para a sua netinha fazer menos barulho porque eu preciso dormir. E caso ela não conheça a lei do silêncio, que passe a conhecer! Passe bem!

Diná vai responder, mas Nádia sai rápido. Nádia volta para o seu apartamento e coloca novamente a camisola e se deita. Diná vai até o aquário onde se encontra um Beta e conversa com ele.

Diná: (Rindo) Tá vendo, Gilda! Borbulhar mais baixo, entendeu?

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