Um: Eu me esqueci.
Outro: De quê?
Um: Me esqueci.
Outro: Sim, mas de quê?
Um: Justamente. Eu me esqueci do que eu esqueci, entendeu?
Outro: Não.
Um: Eu me esqueci de alguma coisa. Então resolvi te falar. Só que na hora de verbalizar eu me esqueci o que eu tinha esquecido.
Outro: Esquecimento do esquecimento.
Um: Pois é.
Outro: Inveja dos elefantes.
Um: Eu não. Eles têm a pele muito seca.
Outro: Mas não esquecem.
Um: Não esquecem?
Outro: Nunca. A memória do elefante é uma coisa impressionante.
Um: Por que será, hein?
Outro: Tem a ver com o peso.
Um: O peso?
Outro: O peso. Elefantes são animais pesados. Contato com a terra. Pé no chão. Memória forte.
Um: Faz sentido.
Outro: Quanto mais aéreo é o animal, menos memória ele tem.
Um: Coitada da águia.
Outro: E do falcão?
Um: Nem se fala.
(pausa)
Outro: Por que será que a gente não se esquece de respirar.
Um: Mas esquece. Uma tia minha já se esqueceu
Outro: De respirar?
Um: É. Ela era magra. Muito magra. Um dia ela se esqueceu de respirar.
Outro: Por quanto tempo?
Um: Um bom tempo.
Outro: E o que aconteceu com ela?
Um: Ela morreu.
Outro: Que coisa. Morte por esquecimento é uma coisa muito triste.
Um: Vive acontecendo na minha família.
Outro: É mesmo?
Um: Bastante. Já tive um primo que morreu por que se esqueceu de como andar.
Outro: Morreu sozinho em casa?
Um: Não. Atropelado por uma kombi bordeaux na Voluntários da Pátria. Estava atravessando a rua e se esqueceu de como andar.
Outro: Como é que você sabe?
Um: O quê?
Outro: Que ele se esqueceu de como andar.
Um: Ele me disse.
Outro: Você estava com ele?
Um: Do lado.
Outro: E ele falou assim? Do nada? “Me esqueci de como se anda”?
Um: Exatamente.
Outro: Que coisa.
Um: Agora pior que isso só mesmo o meu tio avô.
Outro: Morreu também?
Um: Não. Mas ele se esqueceu da palavra “eu”.
Outro: A palavra “eu”?
Um: É. Esqueceu completamente. Do significado e da própria palavra.
Outro: Como é que ele faz?
Um: Como é que ele faz o quê?
Outro: Pra viver!
Um: Ué. Normal. Mas ele nunca fala dele. Só dos outros.
Outro: Mas e se ele precisa falar alguma coisa que está acontecendo com ele.
Um: Tipo o quê?
Outro: Tipo uma dor que ele esteja sentindo.
Um: Ele não sente.
Outro: Não sente?
Um: Não. Como tudo o que ele diz só diz respeito ao outro, as coisas não acontecem mais com ele.
Outro: Que interessante.
Um: Nem tanto. Por que tudo passa acontecer com os outros.
Outro: Outros?
Um: Ele não diz, por exemplo, “eu estou com fome”. No lugar ele sempre fala “você está com fome”. E acaba que a pessoa para quem ele fala isso, acaba tendo fome mesmo.
Outro: Verdade?
Um: Total. Outro dia passei a tarde com ele e comi uns três pacotes de biscoito.
Outro: Por quê?
Um: Porque ele dizia que eu queria comer biscoitos.
Outro: E você queria?
Um: A partir do momento que ele falava sim.
Outro: Mas não faz sentido.
Um: Claro que faz. É que na verdade, é ele quem quer comer biscoitos. É um impulso genuíno.
Outro: Até aí tudo bem.
Um: Mas como ele se esqueceu da palavra “eu”, ele passa o tal impulso pra outra pessoa.
Outro: Esquecimento do eu… Esse deve realmente ser o pior de todos os esquecimentos.
Um: Tem seu lado bom. Ele faz sexo com as mulheres mais maravilhosas que eu já vi. E olha que ele já tem setenta anos.
Outro: Sua família é muito aérea, né?
Um: Muito. Você não faz idéia.
Outro: Por quê?
Um: Você é meu pai.
Outro: Como assim???
Um: É que você se esqueceu.
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