sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

A lembrança

Um: Eu me esqueci.

Outro: De quê?

Um: Me esqueci.

Outro: Sim, mas de quê?

Um: Justamente. Eu me esqueci do que eu esqueci, entendeu?

Outro: Não.

Um: Eu me esqueci de alguma coisa. Então resolvi te falar. Só que na hora de verbalizar eu me esqueci o que eu tinha esquecido.

Outro: Esquecimento do esquecimento.

Um: Pois é.

Outro: Inveja dos elefantes.

Um: Eu não. Eles têm a pele muito seca.

Outro: Mas não esquecem.

Um: Não esquecem?

Outro: Nunca. A memória do elefante é uma coisa impressionante.

Um: Por que será, hein?

Outro: Tem a ver com o peso.

Um: O peso?

Outro: O peso. Elefantes são animais pesados. Contato com a terra. Pé no chão. Memória forte.

Um: Faz sentido.

Outro: Quanto mais aéreo é o animal, menos memória ele tem.

Um: Coitada da águia.

Outro: E do falcão?

Um: Nem se fala.

(pausa)

Outro: Por que será que a gente não se esquece de respirar.

Um: Mas esquece. Uma tia minha já se esqueceu

Outro: De respirar?

Um: É. Ela era magra. Muito magra. Um dia ela se esqueceu de respirar.

Outro: Por quanto tempo?

Um: Um bom tempo.

Outro: E o que aconteceu com ela?

Um: Ela morreu.

Outro: Que coisa. Morte por esquecimento é uma coisa muito triste.

Um: Vive acontecendo na minha família.

Outro: É mesmo?

Um: Bastante. Já tive um primo que morreu por que se esqueceu de como andar.

Outro: Morreu sozinho em casa?

Um: Não. Atropelado por uma kombi bordeaux na Voluntários da Pátria. Estava atravessando a rua e se esqueceu de como andar.

Outro: Como é que você sabe?

Um: O quê?

Outro: Que ele se esqueceu de como andar.

Um: Ele me disse.

Outro: Você estava com ele?

Um: Do lado.

Outro: E ele falou assim? Do nada? “Me esqueci de como se anda”?

Um: Exatamente.

Outro: Que coisa.

Um: Agora pior que isso só mesmo o meu tio avô.

Outro: Morreu também?

Um: Não. Mas ele se esqueceu da palavra “eu”.

Outro: A palavra “eu”?

Um: É. Esqueceu completamente. Do significado e da própria palavra.

Outro: Como é que ele faz?

Um: Como é que ele faz o quê?

Outro: Pra viver!

Um: Ué. Normal. Mas ele nunca fala dele. Só dos outros.

Outro: Mas e se ele precisa falar alguma coisa que está acontecendo com ele.

Um: Tipo o quê?

Outro: Tipo uma dor que ele esteja sentindo.

Um: Ele não sente.

Outro: Não sente?

Um: Não. Como tudo o que ele diz só diz respeito ao outro, as coisas não acontecem mais com ele.

Outro: Que interessante.

Um: Nem tanto. Por que tudo passa acontecer com os outros.

Outro: Outros?

Um: Ele não diz, por exemplo, “eu estou com fome”. No lugar ele sempre fala “você está com fome”. E acaba que a pessoa para quem ele fala isso, acaba tendo fome mesmo.

Outro: Verdade?

Um: Total. Outro dia passei a tarde com ele e comi uns três pacotes de biscoito.

Outro: Por quê?

Um: Porque ele dizia que eu queria comer biscoitos.

Outro: E você queria?

Um: A partir do momento que ele falava sim.

Outro: Mas não faz sentido.

Um: Claro que faz. É que na verdade, é ele quem quer comer biscoitos. É um impulso genuíno.

Outro: Até aí tudo bem.

Um: Mas como ele se esqueceu da palavra “eu”, ele passa o tal impulso pra outra pessoa.

Outro: Esquecimento do eu… Esse deve realmente ser o pior de todos os esquecimentos.

Um: Tem seu lado bom. Ele faz sexo com as mulheres mais maravilhosas que eu já vi. E olha que ele já tem setenta anos.

Outro: Sua família é muito aérea, né?

Um: Muito. Você não faz idéia.

Outro: Por quê?

Um: Você é meu pai.

Outro: Como assim???

Um: É que você se esqueceu.

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