(o texto é meu, não as mulheres)
Um apartamento. Dois amigos na faixa dos 25 a 35.
Um: Mas como é que isso foi acontecer?
Outro: Como assim acontecer?
U: Como é que aconteceu? Essa situação?
O: Eu é que vou saber?
U: É claro que é você que vai saber. Ela aconteceu com você!
O: Você perdeu sua carteira.
U: E daí?
O: Também aconteceu com você e nem por isso você sabe como perdeu.
U: É diferente.
O: A mesma coisa.
U: Perder a carteira é um evento isolado. A sua situação são eventos contínuos. Não é por acaso.
O: Mas acontece.
U: Acontece?
O: Aconteceu. Vem cá. Você vai me ajudar ou não vai?
U: Acho que não.
O: Por quê?
U: Eu não acredito em você.
O: Mas por quê?
U: Por que é uma história absurda.
O: Você perdeu sua carteira dormindo.
U: E daí?
O: Também é uma história absurda e nem por isso eu deixei de acreditar em você.
U: Mas como é que eu nunca soube?
O: Da situação?
U: Das mulheres. Como é que eu nunca soube das mulheres?
O: Eu sou discreto.
U: É mentiroso.
O: A troco de quê eu estaria mentindo pra você?
U: Pra me impressionar.
O: Pra quê?
U: Você me admira.
O: Vamos combinar uma coisa. Acredita em mim por um tempo preestabelecido.
U: Um tempo.
O: Dez minutos, pode ser?
U: Dez minutos?
O: Dez minutos. Acredita em mim pelos próximos dez minutos. Nesse tempo você tenta me ajudar. Com a minha situação. Depois, se você não estiver satisfeito com você acreditando em mim e na minha situação, você pode voltar a desacreditar em mim. E na situação.
U: Não entendi muito bem.
O: É um tempo de crédito que você ta me dando.
U: Tempo de crédito?
O: De dez minutos.
U: Pra acreditar em você.
O: Exatamente.
U: Eu não posso fazer isso.
O: Por quê não?
U: Crédito pra acreditar. É um crédito de crédito.
O: E daí?
U: Muito ruim. Crédito de crédito?
O: Ruim por quê?
U: Porque é feio. Soa mal. Eu nunca escreveria isso. E é redundância.
O: Redundância.
U: Pleonasmo.
O: Não é não. Só porque é uma repetição de palavras não quer dizer que é redundância.
U: Ah, não?
O: Não. Redundância é um reforço desnecessário de significados. Tipo subir pra cima, descer pra baixo, entrar pra dentro, conviver junto, encarar de frente, ganhar de graça, ter opinião pessoal, prefeitura municipal, projeto pro futuro, sorriso nos lábios, goteira no teto, estrelas do céu, países do mundo, almirante da marinha, general do exército e brigadeiro da aeronáutica. Crédito de crédito não é redundância. É outra coisa.
U: É o quê, hein? Hipérbole?
O: Acho que é hipérbato!
U: Ou catacrese?
O: Não, não. Anacoluto.
U: Zeugma, de repente…
Apartamento vizinho. Duas senhoras.
Senhora: Zigmund ,de repente?
Outra senhora: Não, não. Anacleto.
Senhora: Ou Catalão?
Outra senhora: Acho que é Hipólito!
Senhora: Eu não me lembro. Definitivamente não me lembro. Só sei que era um nome muito estranho.
Outra senhora: E vocês nunca mais se viram?
Senhora: Não. Mas foi melhor assim. A gente não conseguia conviver junto. Eu não podia ter opinião pessoal que ele me encarava de frente e o que eram estrelas no céu viravam uma goteira no teto.
Outra senhora: Ele era almirante da marinha, né?
Senhora: Não.
Outra senhora: Brigadeiro da aeronáutica?
Senhora: General do exército. Depois que ele saiu pra fora do Brasil nunca mais vi.
Outra senhora: Deve ter viajado por muitos países do mundo.
Senhora: É…
Outra senhora: Ele foi o último?
Senhora: Último e o primeiro. Dá pra acreditar? Ai, meu Deus. Como é que isso foi acontecer?
Outra senhora: Como assim acontecer?
Senhora: Como é que aconteceu? Essa situação?
Outra senhora: Não é você que tem que saber.
Senhora: Claro que sou eu. Ela aconteceu comigo!
OS: Eu perdi minha virgindade.
S: E daí?
OS: Também aconteceu comigo e mesmo assim eu não me lembro como foi.
S: É diferente.
OS: A mesma coisa.
S: A minha situação é uma história absurda.
OS: Eu perdi minha virgindade dormindo. Quer história mais absurda do que isso?
S: Você me ajuda?
OS: Com a sua situação?
S: É.
OS: Como é que eu vou te ajudar? Tudo o que eu tenho na vida é uma conta no Orkut e um celular de cartão com dez minutos de crédito.
S: Crédito de dez minutos?
OS: Dez minutos de crédito.
S: Crédito de crédito?
OS: Dez minutos de crédito.
S: Ah, tá. Crédito de crédito. Muito ruim celular de crédito.
OS: É redundância.
S: O quê?
OS: Pleonasmo. Celular de crédito ruim é redundância. Celular de crédito por si só já é ruim.
S: Crédito de crédito.
OS: Mas e a sua situação? Como a gente resolve a sua situação?
Apartamento 1
Outro: Como é que eu resolvo a minha situação?
Um: Eu vou te dar.
Outro: O quê?
Um: O crédito. Eu vou te dar o crédito.
Outro: O crédito de crédito?
Um: Começando agora.
Outro: Jura?
U: Você tem nove minutos e cinqüenta e seis segundos.
O: Ta bom, ta bom. Você ta acreditando em mim?
U: To.
O: Então você acredita na minha situação?
U: Claro. Eu acredito.
O: Mesmo?
Um: Sim. Eu acredito que você comeu uma mulher diferente todos os dias da sua vida desde que você perdeu a sua virgindade.
O: Eu sei que é estranho.
Um: Que não se tenham passado 24 horas sem que você não tivesse transado desde o momento em que você praticou sexo pela primeira vez.
O: Aconteceu.
Um: Que você tenha tido religiosamente em todos os quadrinhos do calendário uma relação coital com parceiras múltiplas a partir do momento que a sua glande travou um contato inédito com dois pequenos lábios e o seu pênis desbravou heroicamente um caminho em direção ao canal vaginal da infeliz mulher que te amaldiçoou com esse drama diário.
O: Ironia não ajuda.
U: Eu não estou sendo irônico.
O: Drama diário.
U: O quê?
O: Você descreveu bem. É um drama diário o que eu vivo. Transar com uma mulher diferente todos os dias. Um drama diário.
U: Drama diário. Acho que eu já ouvi isso em algum lugar.
O: Eu sempre fico com medo de não conseguir a mulher do dia entendeu? Como se eu não trepasse com uma mulher nova naquele dia o meu mundo fosse acabar.
U: Drama diário, drama diário.
O: É uma pressão. Teve uma vez que eu só consegui transar às onze e cinqüenta e oito da noite.
U: Drama…
O: Eu não agüento mais.
U: Diário.
O: Quer parar de ficar re
petindo isso?
U: Por quê?
O: Sei lá. To achando esquisito.
U: Esquisita é a sua situação.
O: Eu não sei mais o que fazer.
U: Peraí. Quantas mulheres você já comeu?
O: Então. Essa é que é a questão.
U: Ah, ta. A questão.
O: Ontem, eu comi a milésima novecentésima nona.
Pausa
O: 1999!
U: Ah, 1999. (Pausa) 1999?
O: É.
U: Você tá me dizendo que você comeu 1999 mulheres?
O: Fala mais alto que não te ouviram em Niterói!
U: Mas sendo uma por dia isso dá…
O: Cinco anos sete meses e dezenove dias. Eu como diariamente uma mulher diferente desde os últimos cinco anos, sete meses e dezenove dias.
U: Mas isso que dizer que você só perdeu a virgindade há cinco anos?
O: É.
U: Começou tarde, hein.
O: Não vamos focar nessa parte da história senão fica inverossímil.
U: Ta.
O: O caso é que eu comi 1999 mulheres diferentes. E agora que ta chegando na de número 2000 eu não sei… eu acho que eu não vou conseguir… Eu também não quero mais isso pra mim. Dá trabalho. Administrar tanta mulher assim. E os caderninhos…
Um: Que caderninhos?
Outro: Cada uma é registrada com nome, número de telefone e comentário sobre a noite.
U: Você tem um catálogo das mulheres que você comeu?
Outro: Tenho.
Um: E você organiza por quê? Ordem alfabética?
O: Não, peraí. Também não é assim!!! É por ordem de preferência…
U: Vem, cá. Você já pensou em fazer terapia?
O: Pra quê?
Um: Pra ser normal!
O: E perder todo meu charme?
Um: É inacreditável. Você deve ter comido todas as mulheres que a gente conhece, né?
Pausa
Um: Você deve ter comido todas as mulheres que a gente conhece, né?
Outro: Você acabou de falar isso.
Um: As minhas amigas, minhas ex-namoradas… Você comeu a Carlinha?
O: Que Carlinha? 843 ou 237?
U: A Carlinha minha irmã!
O: 352…
U: A minha mãe!
Outro apartamento
OS: Ai, minha mãe. Você conta?
S: Anoto num caderninho. Todos os homens com quem eu tentei transar.
OS: Quer dizer que desde o Brigadeiro da aeronáutica…
S: General do Exército.
OS: Desde o general do exército que tirou a sua virgindade, nunca mais?
S: Nem um boquetinho, com o perdão da palavra. Parece maldição. Todos os dias eu tento. Há cinqüenta anos eu tento (pausa) dar, com o perdão da palavra. Mas nunca consegui.
OS: O que é que acontece?
S: Tudo minha filha, tudo. No início eu ficava esperando, sabe? Depois que o general foi embora eu queria o homem certo no lugar certo. Com o tempo eu cansei de esperar e comecei a me atirar pra cima dos homens mesmo. Mas na hora da coisa acontecer, sempre tinha um problema.
OS: Como assim, problema?
S: Uma brochadura aqui, uma falta de camisinha ali. Você acredita que teve até um que quebrou a perna tentando tirar a calça.
OS: Nossa, mas como é que ele conseguiu?
S: Não sei. Mas empatou a foda. Com perdão da palavra. Eu já tentei de tudo. Agência matrimonial, classificado sentimental, prostíbulo.
OS: Prostíbulo?
S: O que que eu podia fazer? Lá certamente tinha o que eu tava procurando. Mas não deu certo não. A cafetina disse que eu era muito recatada.
Outra senhora: Que bom né?
Senhora: Bom pra você que deve transar que nem uma louca. Eu que só fiz uma vez queria mais é parecer uma vagabunda, entrar praquele bordel e tirar meu atraso de cinqüenta anos.
Outra senhora: Ah, você foi num prostíbulo recentemente?
Senhora: Semana passada.
OS: Quer dizer que desde que você perdeu sua virgindade com o general você nunca conseguiu fazer sexo de novo?
S: Eu sei que é estranho.
Outra senhora: Que desde que você fez sexo pela primeira vez nunca mais aconteceu.
S: É
OS: Que depois que você deu, nunca mais deu de novo.
Senhora: Fala mais alto que não te ouviram em Irajá!
OS Mas que drama.
Senhora: E diário. É um drama diário!
OS: Drama diário.
Senhora: Drama diário.
OS: É. Diário, o drama. Diário.
S: Drama diário.
OS: Diário.
S: Diário.
OS: Drama diário! Drama diário!
S: Di-á-ri-o.
OS: Drama diário.
(pausa)
Senhora, outra senhora, um e outro juntOS: Drama diário.
Os dois apartamentos ao mesmo tempo.
OUTRO: Como é que eu faço pra resolver o meu drama diário?
UM: É muito simples.
OUTRA SENHORA: Pára de procurar.
OUTRO: Parar de procurar?
UM: O que te deixa agoniado é a obrigação de ter que comer alguém todos os dias.
OUTRA SENHORA: É essa obsessão de ter que dar.
SENHORA: Mas eu quero dar.
UM: Eu sei, mas você não precisa ficar indo atrás. Deixa rolar.
OUTRA SENHORA: Deixa rolar.
UM: E tem que parar de ficar listando as mulheres.
OUTRA SENHORA: Me dá o caderninho. Senão você vai querer anotar de novo.
OUTRO: Mas você acha que eu já não tentei isso? Eu não consigo.
SENHORA: Eu não agüento mais ser casada com uma coleção de vibrador e almofada.
OUTRA SENHORA: Calma.
UM: Você tem que se controlar.
OUTRA SENHORA: Precisa.
UM: Vamos fazer uma experiência.
SENHORA: Experiência?
OUTRA SENHORA: É muito simples.
UM: Sai.
OUTRO: Sair?
Outra senhora: Sai de casa. Sem rumo. Sai de casa sem rumo.
Senhora: Como assim?
Um: Sai de casa sem rumo. A primeira mulher que você encontrar…
Outra senhora: O primeiro homem que você vir, se aproxima.
Um: Chega perto.
Outra senhora: Puxa um papo.
Um: Sei lá. Pede uma informação.
Outra senhora: Mas tem que ser o primeiro.
Um: Não pode escolher.
Outra senhora: Agora, tem uma coisa.
Outro: Eu sabia que tinha uma coisa.
Senhora: Fala.
Um: Por mais que essa mulher se jogue em cima de você…
Outra senhora: Mesmo que esse homem seja irresistível…
Um: Você não vai querer transar com ela.
(Juntos)
Outra senhora: Você não vai querer dar pra ele.
(pausa)
Senhora: Ai meu Deus. Será que eu vou conseguir?
Outro: É que já vai dar 24 horas desde que eu comi a última.
Outra senhora e Um: Tenta.
Os dois se levantam. Saem de seus apartamentos e se cruzam no corredor, em frente ao elevador.
Outro: Boa noite.
Senhora: Boa noite.
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