sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Blow

O público está na porta de um teatro. Do lado de fora um alto-falante. Eles ouvem a seguinte gravação.

Homem: Uma calça preta. Meias brancas. Sapatos pretos. Uma camisa branca. Um blaser preto. Um guarda-chuva marrom. E uma cueca bege. Eu estou no teatro. Estou na porta do teatro vestindo uma calça preta, meias brancas, sapatos pretos, uma camisa branca, um blaser preto e um casaco marrom. Esta é minha voz. Minhavoz gravada. Eu estou na porta do teatro e você ouve minha voz gravada. Mas você não me vê. Eu estou na porta do teatro mas você não me vê. Eu estou a cinco metros da porta. Levemente à direita. Cinco metros e levemente à direita da porta vestido de preto, branco, marrom e bege. Mas você não me vê. Eu vou me aproximar da porta agora. Eu dou cinco passos e me coloco em frente à porta do teatro. Mesmo assim, você ainda não me vê. Eu coloco a minha mão na maçaneta, eu aperto essa maçaneta, e eu abro a porta.

A porta se abre, o homem sai de dentro do teatro vestido exatamente como se descreveu. Ele fecha a porta e fica em frente a ela. No seguinte texto, o homem faz todas as ações descritas na fala. Por isso há muitas pausas. Todo o texto continua sendo uma gravação. O homem fica no meio do público que está em pé do lado de fora da rua.

Eu estou na porta do teatro e agora você me vê. Uma calça preta. Meias brancas. Sapatos pretos. Uma camisa branca. Um blaser preto. Um guarda chuva marrom. E uma cueca bege. Eu estou no Rio de Janeiro. Você está no Rio de Janeiro. São nove e cinco da noite. Hoje é Sábado. Foi um dia de sol. Você está em pé, no Rio de Janeiro, numa noitede sábado. Não chove agora. Um carro amarelo acabou de passar na rua ao lado. No prédio em frente, uma criança começou a chorar no terceiro andar. E um casal briga no décimo. Ela joga ovos no marido.

Caem ovos na rua

Homem: Uma senhora acaba de morrer sozinha em seu apartamento a três quarteirões daqui. Eu estou na porta do Teatro e você me vê. Eu procuro uma mulher. Eu dou dois passos e paro. Eu procuro uma mulher num Café. Eu viro para a direita. Eu vejo uma mulher. Ela está com os braços à mostra. Ela é morena. Tem trinta e quatro anos e quebrou a perna esquerda quando morava no interior de São Paulo aos cinco anos de idade. Ela não é a mulher que eu procuro. Eu procuro uma mulher num café. Vestida de vermelho. Eu viro para a esquerda. Eu paro em frente a um homem. Ele tem cabelos curtos, o nariz grande, veste uma blusa de botão e pesa menos de setenta quilos. Ele costuma tomar cerveja alemã nas manhãs de domingo e rói unhaquando ninguém está olhando. Ele não é a mulher que eu procuro. Eu sigo adiante. Eu procuro uma mulher num Café. Eu paro ao lado de um carro vermelho. Eu abro a porta. Eu entro no carro. Eu estou dentro de um carro vermelho na porta do teatro e agora você não me vê. Você está em pé no Rio de Janeiro e você não me vê. Eu ligo o carro. Engato a primeira. Eu acelero. Eu procuro uma mulher de vermelho num Café. Eu freio. Ligo o pisca alerta. Eu saio do carro. Eu atravesso a rua você me acompanha com o seu olhar. Eu começo a andar em direção a um Café. Você anda em direção ao café para me ver melhor. Eu procuro uma mulher de vermelho. Eu paro. Você me vê de pé, em frente a um café. Você está em pé, no Rio de Janeiro, em frente a um teatro e você me vê. Eu estou sendo observado. Você está em pé e eu estou sendo observado. Eu agacho. Você imagina qual será meu próximo passo. Você me imagina levantando. Eu levanto. Eu estou em pé e estou sendo observado. Eu procuro uma mulher no Café.Ela não está lá. Eu saco a minha câmera. Você me vê sacando a minha câmera. Eu tiro uma foto e ela não está lá. Você está em pé me observando. Você está em pé e está sendo observado. Eu estou em pé, em frente a um café e você está sendo observado. Eu te observo na porta do teatro e você não me vê.

Neste momento o homem que saiu do teatro, foi viso na platéia desde o início e que o público estaria vendo, surge misteriosamente atrás do público e diz a seguinte frase, ao vivo, sem gravação.

Homem: Eu te observo na porta do teatro e agora você me vê.

O público percebe que a pessoa que saiu do carro e que ela estava acompanhando não era a mesma que entrou. Mas a cena passa a ilusão de que era a mesma pessoa. Deu pra entender?

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