A TELEVISÃO SEMPRE LIGADA. MULHER TERMINANDO DE SE MAQUIAR. SE OLHANDO NO ESPELHINHO. PODE ESTAR FAZENDO CARAS DE CHORO. HOMEM ENTRA COM UMA MALA.
Mulher: Anda logo, senão a gente perde o voo.
Homem: Eu até agora não acredito que a gente tá indo pra Colômbia.
Mulher: Não era você que disse há pouco tempo que a gente tava precisando viajar?
Homem: Eu tinha pensando numa praia tranquila. Ou uma fazendinha.
Mulher: Lugar isolado morre pouca gente.
Homem: A idéia não era essa.
Mulher: Eu sei. Mas a gente tá indo a um enterro que é muito melhor.
Homem: É. Muito melhor.
Mulher: E não é um enterro qualquer. São jovens. Dez jovens.
Homem: São dez jovens.
Mulher: Será que vai ter criança?
Homem: Bem capaz.
Mulher: Ai, tomara.
Homem: Por quê?
Mulher: Vou chorar que nem uma louca.
Homem: Se tiver criança?
Mulher: Terninho, coroinha, caixãozinho.
Homem: Que loucura.
Mulher: Acho tão bonito aquele tom de azul.
Homem: Que tom?
Mulher: Do caixãozinho de criança. (pausa) Uma graça.
Homem: Eu vou terminar a nossa mala.
Mulher: Você viu a minha máquina?
Homem: Você vai levar a máquina de fotografia?
Mulher: A gente não tá indo viajar?
Homem: Mas pra ir a um enterro!
Mulher: As fotos vão ficar lindas!
Homem: Você remarcou o médico?
Mulher: Pra amanhã.
Homem: Mas a gente não vai ter voltado.
Mulher: Então vou ter que desmarcar
Homem: Eu não acredito nisso.
Mulher: Eu também não. Nunca uso máquina fotográfica e na hora que a gente precisa dela a diaba some.
Homem: Você sabe do que eu to falando.
Mulher: Do enterro?
Homem: Do médico.
Mulher: Eu vou remarcar.
Homem: É importante.
Mulher: Eu sei.
Homem: Dependendo do que ele falar da... do...
MULHER PARA DE PROCURAR E ENCARA O MARIDO.
Homem: Dependendo do que ele falar a gente pode voltar a tentar.
PAUSA
Mulher: É. Dependendo a gente pode.
ELES SE APROXIMAM.
Homem: Você tem certeza que você quer ir pra Colômbia atrás de um enterro? (Taí uma frase que eu achei que eu nunca fosse dizer).
Mulher: Eu tenho.
Homem: Pensa bem.
VOLTA A PROCURAR.
Mulher: Não tem o que pensar.
Homem: Eu acho que a gente podia rever essa história.
Mulher: Se a gente revir qualquer coisa a gente perde o vôo.
Homem: A gente pode remarcar a passagem.
Mulher: E perder um enterro desses? Nem morta! (sem trocadilho).
Homem: Me escuta.
Mulher: Vai falando.
Homem: Quando a gente foi ao enterro da minha vó...
SE ESBARRAM/ ELA SEDUZ.
Mulher: O que é que tem?
Homem: Quando a gente foi ao enterro da minha vó.
Mulher: Foi quando a gente percebeu.
Homem: Eu me lembro.
Mulher: E não foi?
Homem: Foi muito.
Mulher: E a gente tem conseguido.
Homem: A gente tem.
Mulher: Depois do enterro da sua vó.
Homem: Por isso que a gente decidiu.
Mulher: Os outros enterros.
Homem: Sentir.
Mulher: Então.
Homem: É que eu acho que é possível. Eu acho que a gente consegue. Sem precisar dos enterros.
Mulher: A gente não consegue.
Homem: A gente consegue.
Mulher: Não é mais a mesma coisa.
Homem: Pode voltar a ser.
Mulher: Não pode. Depois do que eu tenho sentido nos enterros. Não faz mais sentido, entende? Sem os enterros não faz mais sentido. Fica muito comum, muito pequeno. E pouco real.
Homem: Como pouco real?
Mulher: O que eu tenho sentido nos enterros... É uma coisa que eu nunca senti antes na minha vida. Um sentimento que não tem nem nome. Como se fosse uma sensação de tudo. De tudo que eu já passei e de tudo que eu vou passar. E eu não sei se é bom ou se é ruim. Se é alegre ou se triste. Se é frio ou se é vermelho. Eu só sei que é de verdade. É tão de verdade, que parece que tudo o que eu sinto fora de lá não é mais o suficiente. Não é mais real. Nem você.
Homem: Eu?
Mulher: É que nos enterros. Quando eu olho pra você. Parece que o castanho do teu olho e o mais castanho que um dia ele vai ser.
ELE MEXE NO CABELO DELA.
Mulher: Quando você tira o cabelo do meu rosto, parece que a sua mão passa pelo lugar exato que uma mão precisa passar pra tirar o cabelo de um rosto.
ELE A ABRAÇA.
Mulher: E quando você usa os seus braços pra me fazer caber no meio do teu corpo, eu entendo o significado real da palavra abraço.
Homem: Eu to te abraçando agora. E é de verdade.
Mulher: Mas não parece. Quando eu não to sentindo o que eu sinto lá... O que eu sinto é... é o que não é. É tudo que não é real.
Homem: Deixou de ser teatro?
Mulher: Virou verdade. O teatro agora é aqui fora.
ELA APONTA PARA A TELEVISÃO, COMO SE APONTASSE PARA O PÚBLICO. OUVIMOS APLAUSOS DE UM PROGRAMA DE AUDITÓRIO. O HOMEM VIRA O ROSTO DELA. ELES VÃO SE BEIJAR. TOCA O TELEFONE.
Mulher: Alô. (tempo). É? (tempo). Que ótimo (tempo). Onde? (tempo). Ta. (tempo). No azul. No Amarelo, então? Setor amarelo. Tá. (tempo). Tchau.
Homem: Quem era?
Mulher: Minha irmã teve filho.
Homem: E agora?
Mulher: A gente manda flores do aeroporto.
Homem: A gente não vai?
Mulher: Ao enterro? *Claro que sim. (juntos)
Homem: *Não, à maternidade?
Mulher: Quê?
Homem: Ao enterro?
Mulher: É. Ao enterro. Bogotá, Colômbia. Foi.
Homem: E à maternidade?
Mulher: Depois de amanhã.
Homem: Mas ela ta na maternidade?
Mulher: Ta. Na maternidade... * do hospital onde eu trabalho.
Homem: *no seu hospital? (juntos)
Homem: E a gente não vai visitar.
Mulher: Acabei de falar, depois de amanhã. Vamos senão a gente perde o vôo.
Homem: Meu amor.
Mulher: Desisti de procurar a minha máquina.
Homem: (PARA SI) Dez descidas, dez abraços, dez descidas.
Mulher: O que é que você tá falando?
Homem: Nada.
Mulher: O enterro vai ser lindo.
Homem: Vai. Vai ser lindo.
Mulher: Será que hoje a gente consegue?
Homem: Consegue o quê?
Mulher: O choro grave?
Homem: Vamo tentar.
Mulher: Mas não tem como.
Homem: Não tem.
Mulher: A gente não conhece nenhuma vítima.
Homem: Quem sabe você não consegue?
Mulher: Só se o professor de matemática se matasse.
Homem: Oi?
Mulher: Do meu obituário ideal.
SILÊNCIO. PEGA NA BOLSA.
Mulher: Achei minha máquina. Vamos embora?