sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A solução

Mulher e Cartomante.

Cartomante: Então minha filha, o que a traz aqui?

Mulher: Me disseram que a senhora é uma cartomante especializada em simpatias.

Cartomante: Te disseram certo.

Mulher: Sei…

Cartomante: A senhora não acredita?

Mulher: Fico desconfiada.

Cartomante: Por quê?

Mulher: A senhora atende em Botafogo.

Cartomante: E daí?

Mulher: Nunca vi cartomante boa em Botafogo. Cartomante boa mora longe. De preferência no subúrbio.

Cartomante: O quê?

Mulher: Marechal Hermes, Vilar dos Teles, Valparaíso. Lá tem cartomante boa.

Cartomante: A senhora está enganada.

Mulher: Enganada está a senhora com esse corte de cabelo.

Cartomante: Como assim?

Mulher: Cinco pontas.

Cartomante: Cinco o quê?

Mulher: Vidal Sassoon. Nunca ouviu falar?

Cartomante: Eu…

Mulher: Claro que não. A senhora é cartomante. Cartomantes falam errado e não têm cultura.

Cartomante: Minha senh…

Mulher: Vidal Sassoon revolucionou o corte de cabelo feminino na década de sessenta com formas geométricas e ângulos retos em cabelos lisos e pretos aposentando a era do laquê. Algo muito semelhante a esse corte que a senhora tem (obviamente não tão cafona e mal executado). Como a senhora pode perceber usar um corte ultrapassado e demodé em pleno século XXI faz a senhora estar redondamente enganada.

Cartomante fica um tempo paralizada não entendendo nada.

Mulher: Isso sem falar nessa blusa de jerse, mas não vou nem entrar nesse mérito senão nós não saímos daqui hoje.

Cartomante: A senhora… A senhora… (pausa) A senhora aceita um copo d´água?

Mulher: Sim, por favor.

Cartomante sai.

Mulher: Lustrezinho de mau gosto…

Cartomante volta. Entraga o copo d´água. Mulher bebe inteiro e coloca na mesa.

Mulher: Quente.

Cartomante: Como?

Mulher: E com gosto de terra.

Cartomante: ?

Mulher: A água. Está quente e com gosto de barro. O mínimo que a senhora podia fazer para uma cliente que está pagando é servir água levemente climatizada e que tenha passado por um filtro limpo pelo menos uma vez desde os últimos cinco anos, que claramente não é o caso.

Cartomante: A senhora…

Mulher: E esse tom.

Cartomante: O que é que tem meu tom?

Mulher: O que é que tem seu tom? Tudo, não é minha senhora? Podia ser um pouco menor. Mais baixo. É mais apropriado para alguém que faz um trabalho como o seu.

Cartomante: Nenhum cliente meu reclamou do meu tom.

Mulher: Já era de se esperar.

Cartomante: O que a senhora quer dizer com isso?

Mulher: Experimente abaixar em umas três oitavas a sua voz. Talvez dessa forma seja levemente suportável ouvir o que a senhora tem a dizer.

Cartomante: Olha aqui, minha filha. Eu fui muito educada até agora. Mas você está passando dos limites. Ou você desce desse salto e me diz agora o que você quer de mim ou a você ponha-se daqui pra fora. Por que em vinte e cinco anos de cartomancia eu nunca vi uma mulher tão… tão… tão… antipática.

Mulher: Justamente.

Cartomante: Justamente o quê?

Mulher: A simpatia.

Cartomante: O que é que tem a simpatia.

Mulher: Eu queria uma simpatia para ficar mais simpática.

Cartomante: O quê?

Mulher: É mais forte do que eu. Eu tento, mas não consigo. Eu tento ser simpática, dócil, meiga, amável e outros adjetivos idiotas que tornam a gente socialmente aceito. Mas não consigo. Eu não consigo.

Cartomante: Você quer uma simpatia pra ter simpatia?

Mulher: Exatamente. A senhora acha que consegue resolver o meu caso?

Cartomante dá uma boa olhada pra mulher.

Cartomante: Resolvo. Resolvo sim…

Mulher: Ótimo. Então me diga minha senhora. O que eu devo fazer?

Cartomante: O que a senhora deve fazer?

Mulher: Sim.

Cartomante: Bom, primeiro a senhora tem que tomar um banho com pétalas de rosa branca.

Mulher: Banho com pétalas de rosa branca. Anotado.

Cartmonte: Depois passa essência de lavanda atrás das orelhas.

Mulher: Essência de lavanda.

Cartomante: Saia de casa numa noite de lua cheia, depois da meia-noite de sábado.

Mulher: Sim.

Cartomante: Encontre um homem solteiro e dê a ele um preparado de noz-moscada, gengibre e cachaça.

Mulher: Ok, isso é fácil

Cartomante fica muda

Mulher: E depois, minha senhora. O que eu faço depois?

Cartomante: O que você faz?

Mulher: Sim?!?!

Cartomante: Leva ele pra casa e trepa a noite inteira. Tenho certeza que no dia seguinte você vai acordar muito, mas muito mais simpática.

Mulher: Mas minha senhora!

Cartomante: São noventa reais. Passar bem.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

A lembrança

Um: Eu me esqueci.

Outro: De quê?

Um: Me esqueci.

Outro: Sim, mas de quê?

Um: Justamente. Eu me esqueci do que eu esqueci, entendeu?

Outro: Não.

Um: Eu me esqueci de alguma coisa. Então resolvi te falar. Só que na hora de verbalizar eu me esqueci o que eu tinha esquecido.

Outro: Esquecimento do esquecimento.

Um: Pois é.

Outro: Inveja dos elefantes.

Um: Eu não. Eles têm a pele muito seca.

Outro: Mas não esquecem.

Um: Não esquecem?

Outro: Nunca. A memória do elefante é uma coisa impressionante.

Um: Por que será, hein?

Outro: Tem a ver com o peso.

Um: O peso?

Outro: O peso. Elefantes são animais pesados. Contato com a terra. Pé no chão. Memória forte.

Um: Faz sentido.

Outro: Quanto mais aéreo é o animal, menos memória ele tem.

Um: Coitada da águia.

Outro: E do falcão?

Um: Nem se fala.

(pausa)

Outro: Por que será que a gente não se esquece de respirar.

Um: Mas esquece. Uma tia minha já se esqueceu

Outro: De respirar?

Um: É. Ela era magra. Muito magra. Um dia ela se esqueceu de respirar.

Outro: Por quanto tempo?

Um: Um bom tempo.

Outro: E o que aconteceu com ela?

Um: Ela morreu.

Outro: Que coisa. Morte por esquecimento é uma coisa muito triste.

Um: Vive acontecendo na minha família.

Outro: É mesmo?

Um: Bastante. Já tive um primo que morreu por que se esqueceu de como andar.

Outro: Morreu sozinho em casa?

Um: Não. Atropelado por uma kombi bordeaux na Voluntários da Pátria. Estava atravessando a rua e se esqueceu de como andar.

Outro: Como é que você sabe?

Um: O quê?

Outro: Que ele se esqueceu de como andar.

Um: Ele me disse.

Outro: Você estava com ele?

Um: Do lado.

Outro: E ele falou assim? Do nada? “Me esqueci de como se anda”?

Um: Exatamente.

Outro: Que coisa.

Um: Agora pior que isso só mesmo o meu tio avô.

Outro: Morreu também?

Um: Não. Mas ele se esqueceu da palavra “eu”.

Outro: A palavra “eu”?

Um: É. Esqueceu completamente. Do significado e da própria palavra.

Outro: Como é que ele faz?

Um: Como é que ele faz o quê?

Outro: Pra viver!

Um: Ué. Normal. Mas ele nunca fala dele. Só dos outros.

Outro: Mas e se ele precisa falar alguma coisa que está acontecendo com ele.

Um: Tipo o quê?

Outro: Tipo uma dor que ele esteja sentindo.

Um: Ele não sente.

Outro: Não sente?

Um: Não. Como tudo o que ele diz só diz respeito ao outro, as coisas não acontecem mais com ele.

Outro: Que interessante.

Um: Nem tanto. Por que tudo passa acontecer com os outros.

Outro: Outros?

Um: Ele não diz, por exemplo, “eu estou com fome”. No lugar ele sempre fala “você está com fome”. E acaba que a pessoa para quem ele fala isso, acaba tendo fome mesmo.

Outro: Verdade?

Um: Total. Outro dia passei a tarde com ele e comi uns três pacotes de biscoito.

Outro: Por quê?

Um: Porque ele dizia que eu queria comer biscoitos.

Outro: E você queria?

Um: A partir do momento que ele falava sim.

Outro: Mas não faz sentido.

Um: Claro que faz. É que na verdade, é ele quem quer comer biscoitos. É um impulso genuíno.

Outro: Até aí tudo bem.

Um: Mas como ele se esqueceu da palavra “eu”, ele passa o tal impulso pra outra pessoa.

Outro: Esquecimento do eu… Esse deve realmente ser o pior de todos os esquecimentos.

Um: Tem seu lado bom. Ele faz sexo com as mulheres mais maravilhosas que eu já vi. E olha que ele já tem setenta anos.

Outro: Sua família é muito aérea, né?

Um: Muito. Você não faz idéia.

Outro: Por quê?

Um: Você é meu pai.

Outro: Como assim???

Um: É que você se esqueceu.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Idas e vindas

Personagens:

Nádia: Quarenta anos, solteira. Se veste sobriamente e se comporta como uma senhora.

Diná: Oitenta anos, solteira. Se veste como uma típica senhora de Copacabana.

Um apartamento cheio de caixas, com alguns móveis já desembalados, todos meio antigos. Toca o telefone.

Nádia: Já vai. Já vai! Alô… Não! Pela décima vez, eu já disse que não tem nenhuma Maria de Lourdes! Desliga. Que maçada!

Toca de novo.

Nádia: Mas será o Benedito? (Atende) Escuta aqui, seu mequetrefe, se você continuar ligando pra cá eu vou lhe passar uma carraspana que vai fazer você se arrepender de ter saído do útero da sua mãe no infeliz dia do seu nascimento! (pausa). Oi tia. Desculpa. Não, tia. Não tem nada de errado com o útero da vovó não, é que eu achei que fosse outra pessoa. Tia… Tia, eu já disse que não tem nada com o útero da vovó, até porque ele já não existe há mais de dezessete anos! O quê? Ta, ta tudo bem. To só um pouco cansada com essa mudança. Não tenho mais idade pra isso não. Se o prédio é bonito? É meio bocomoco, mas a gente se acostuma, né? Pelo menos o apartamento é bom e eu consegui me livrar daqueles arruaceiros lá da Ronald de Carvalho. (Numa crescente irritação) Ai, finalmente. Aquele lugar parecia uma selva! Era britadeira de dia, batucada de tarde, boogie woogie de noite e bengalafumenga a madrugada inteira. Olha, se eu não saísse dali por espontânea vontade, sairia algemada por assassinato em primeiro grau seguido de esquartejamento!!! (pausa) Eu to calma tia, eu to calma! Eu só preciso descansar um pouco. E agora as coisas vão melhorar. Paz e silêncio. É tudo o que eu preciso pra me recuperar do estresse e voltar a escrever.

Entra um funk em volume altíssimo!

Nádia: Ai, minha Santa Genoveva, eu não acredito. Tia, eu te ligo depois. Eu acho que a Ronald de Carvalho inteira ficou com saudades e resolveu me dar uma festa de boas vindas em cima da minha cabeça!

Nádia interfona para a portaria.

Nádia: Seu José, o senhor poderia pedir para o rapaz do 304 abaixar o som? Ah… não é rapaz? Então pede para essa mocinha… Ah… Não é mocinha? (Grossa) Então pede para esse traveco tirar essa música horrorosa, antes que os meus tímpanos sofram uma ruptura irreversível!

Nádia desliga na cara do porteiro. O som some por um tempo. Nádia faz cara de alívio. Daqui a pouco o som volta à toda.

Liga de novo.

Nádia: Seu José! Pediu? E ela disse o quê? Não entendeu? É uma traveca surda por acaso? Fala com a síndica! Ela é a síndica? Onde é que eu fui amarrar o meu bode? Me disseram que essa era um prédio tranqüilo. De idosos. Escuta aqui, seu José, o senhor fala de novo ou eu não respondo por mim!

A música pára de novo. Nádia senta aliviada. Ouvimos agora um som de móveis se arrastando.

Nádia: Só pode ser piada.

Interfona.

Nádia: Seu José! Pede para essa maluca mudar os móveis de lugar numa hora apropriada! No meu relógio já são dez e três da noite. E caso ela não saiba, a lei do silêncio começa a vigorar ás dez! Não é dez e um, nem dez e dois, nem dez e três. É às dez! O senhor me faça o favor de interfonar agora, senão eu vou pessoalmente enfiar uma batedeira no ouvido dela!

Ela desliga. O barulho pára. Passam-se alguns segundos. Ouvimos o barulho de batidas no chão.

Nádia: Ah, não. Estão abusando da minha boa educação. Será que eu vou até ter que arrumar um charivari logo no meu primeiro dia nesse prédio? É o fim da picada.

Nádia batendo à porta de Diná. Diná abre. É uma senhora meiga com um rostinho ingênuo. Nádia olha para a senhora e para dentro de sua casa.

Diná: Pois não?

Nádia: Eu acho que eu toquei errado. Desculpe eu devo ter acordado a senhora.

Diná: No problems, querida. (e fecha a porta)

Nádia dá um passo e o barulho volta. Ela olha em volta. Se dá conta de que o barulho vem do apartamento de Diná mesmo. Toca novamente.

Diná: (Simpática) Errado de novo?

Nádia: Esse aqui não é o 304?

Diná: Até hoje sim!

Nádia: A senhora…

Diná: “Você”, querida. Por favor, me chame de você. Meu nome é Diná.

Nádia: A senhora mora sozinha?

Diná: (Olhando para dentro e vê seu aquário) Não. Moro com a Gilda…

Nádia: Ah, então ta explicado. A senhora pede, por favor, para a sua netinha fazer menos barulho porque eu preciso dormir. E caso ela não conheça a lei do silêncio, que passe a conhecer! Passe bem!

Diná vai responder, mas Nádia sai rápido. Nádia volta para o seu apartamento e coloca novamente a camisola e se deita. Diná vai até o aquário onde se encontra um Beta e conversa com ele.

Diná: (Rindo) Tá vendo, Gilda! Borbulhar mais baixo, entendeu?

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Hélio

Uma jovem de uns 25 e um homem de uns 50. Os dois sozinhos num ponto de ônibus da Urca. A jovem parece preocupada.

(A cena pode ser feita por outras duas pessoas de qualquer idade, qualquer sexo, com pequenas adaptações)

JOVEM: Dá licença. Você tem horas?

HOMEM: Se eu tenho horas?

JOVEM: Isso.

HOMEM: Em que sentido?

JOVEM: No sentido de saber que horas são.

HOMEM: No Brasil?

JOVEM: É.

HOMEM: Em qual fuso?

JOVEM: Olha, deixa pra lá.

HOMEM: Não, não. Responde. Eu estou querendo te ajudar.

JOVEM: Não parece.

HOMEM: Por que eu não adivinhei de que parte do mundo você quer saber as horas?

JOVEM: Porque você não me disse que horas são.

HOMEM: Mas como é que eu posso te dizer que horas são se você não me disse a localização do globo cujo horário você quer saber?

JOVEM: Olha…

HOMEM: Eu não sei se você sabe, mocinha, mas a hora muda de unidade em unidade à medida que avançamos quinze graus na longitude terrestre para a esquerda ou para a direita. No caso, mais para o leste, menos para oeste.

JOVEM: Tudo bem…

HOMEM: E eu também não sei se você sabe, mas existem exatamente vinte e quatro dessas divisões pelo globo.

JOVEM: Tá legal, eu já…

HOMEM: E que dessas vinte e quatro divisões, três estão no Brasil.

JOVEM: Eu…

HOMEM: Portanto, a menos que você me diga a exata localização da faixa longitudinal da qual você quer saber o horário eu não tenho como te dizer que horas são.

Ela dá um sorriso amarelo para ele e olha pra frente.

tempo

HOMEM: Ainda quer saber as horas?

JOVEM: Não. Obrigada.

tempo

HOMEM: Como é o seu nome?

JOVEM: Pra que você quer saber?

HOMEM: É que desde o surgimento da fala no período Neolítico…

JOVEM: Tá bom, tá bom, tá bom. Meu nome é Ramona.

HOMEM: Ramona! Que interessante! Ramona é o nome do meu abajur.

JOVEM: Seu abajur?

HOMEM: Da sala. O do quarto é Dorotéia.

JOVEM: Como é que é?

HOMEM: É que a Dorotéia é mais velha.

JOVEM: Hein?

HOMEM: Sempre achei que Dorotéia fosse um nome mais antigo.

JOVEM: Você dá nome pros seus abajurs?

HOMEM: A-ba-ju-RES.

JOVEM: Que seja. Você dá nome pros seus abajures?

HOMEM: Claro.

JOVEM: Ah, claro. É muito óbvio mesmo. Eu por exemplo sempre nomeio as minhas facas.

HOMEM: Você também!

JOVEM: Eu não acredito.

HOMEM: Que bom. As minhas são Viviana, Roberta, Maura e Denise. Tem também a Kátia. Mas ela, coitada, já tá meio cega.

JOVEM: Quem?

HOMEM: A Kátia. Minha faca de churrasco que tá cega.

JOVEM: Você tá falando sério?

HOMEM: To, menina. Ela tá cega mesmo!

JOVEM: Posso te fazer uma pergunta?

HOMEM: No caso, outra.

JOVEM: Pra que é que você dá nome aos seus abajurs…

HOMEM: A-ba-ju-RES!

JOVEM: Aos seus ABAJURES e às suas facas?

HOMEM: Pelo mesmo motivo que a sua mãe te deu o seu.

JOVEM: Eu não entendi muito bem.

HOMEM: Já imaginou se você não tivesse nome? A confusão que ia ser?

JOVEM: E daí?

HOMEM: E daí que é a mesma coisa com as facas! Imagina. Era capaz de eu almoçar, por exemplo com a Maura e o Teodoro…

JOVEM: Teodoro?

HOMEM: Um dos garfos. Enfim. Era capaz de eu almoçar com a Maura e Teodoro, jantar com Roberta e Cristiano e nem me dar conta da diferença. Olha que loucura.

JOVEM: É. Uma loucura mesmo.

HOMEM: Nem me fale…

JOVEM: Bom, pelo que eu to vendo tudo na sua casa tem nome.

HOMEM: Claro.

JOVEM: Tapete…

HOMEM:Cor do texto Antônio.

JOVEM: Televisão…

HOMEM: Valter.

JOVEM: Mesa de cabeceira…

HOMEM: A Glorinha!

JOVEM: E pia…

HOMEM: Essa é Pia mesmo.

JOVEM: Entendi.

HOMEM: Pura coincidência. É que ela tem cara de Pia, sabe?

JOVEM: Sei. E você provavelmente conversa.

HOMEM: Conversar.

JOVEM: Com a televisão…

HOMEM: Por favor… Valter.

JOVEM: Como o Valter, o Antônio, a Glorinha… A Pia…

HOMEM: E por que não conversaria? Eles só não me respondem.

JOVEM: Meu Deus.

HOMEM: O que foi, Ramona?

JOVEM: Nada não.

HOMEM: Fala!

JOVEM: Muito triste.

HOMEM: Triste? O que é triste?

JOVEM: Você! Isso que você faz. Patético.

HOMEM: Você acha? Engraçado. Eu acho o contrário.

JOVEM: O quê?

HOMEM: Eu acho que triste é o contrário.

JOVEM: Como assim o contrário?

HOMEM: Acho triste alguém que acredita que a palavra “faca” substitui todas as facas que existem. Alguém que se dá por satisfeito em almoçar sem se importar com cada detalhe do que está fazendo. E acho mais triste ainda alguém que só consegue dar bom dia se for receber uma resposta. Isso, Ramona, eu realmente acho triste.

JOVEM: Você é maluco, né?

HOMEM: Também acho triste. Chamar o que é diferente da gente de maluco. Olha, Ramona, eu vivo muito bem do jeito que eu sou. Muito mesmo. E ter a capacidade de acordar bem dando bom dia pro Valter e manter o bom humor desde cedo contando uma piada pro Timóteo (que no caso é o meu aparelho de barbear) não é triste não. Nem patético. É ser feliz. E ter imaginação e disponibilidade pra ser feliz. Mesmo que eu não tenha ninguém. Meio brega, né? Mas é o que é.

A jovem fica olhando para o homem sem entender. Ela se levanta, faz sinal para o ônibus. Ao dar o primeiro passo como se fosse subir, o homem interrompe.

HOMEM: Ramona!

Ela se vira para ele.

HOMEM: São nove horas.

Ela sorri.