sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Sobre a verdade

Homem: Uma gota. Verde. Era uma gota verde. Só isso. Uma gota – líquida, claro, na medida que se pressupõe que todas as gotas sejam líquidas – só que verde. Um verde assim… verde, sabe? Sabe verde? Sabe quando a gente é criança e pensa no verde? Quando você é criança, verde é verde. Depois você cresce e começa a surgir o verde piscina, verde musgo, verde oliva, verde claro, verde escuro, verde bandeira. Mas quando você é criança e pensa no verde, vem aquela cor sólida e única. Aquela cor verdadeira. Sem variação. É aquilo e ponto. Então. Essa gota tinha esse verde que eu to falando. O verde verdade. O verde que a gente pensa quando é criança. Verde verdade. E eu fiquei catatônico quando eu vi essa gota verde verdade. Por que ela era. Ela era! Só isso, ela era. Quando você vê uma gota vermelha ela pode ser sangue. Amarela, urina. Laranja, suco. Preta, sujeira. Mas a gota verde não. Você não pensa em nada. Só na gota. E ainda mais com esse verde. Ela era uma gota verde verdade. E eu olhava praquela gota. Eu olhava praquela gota. Foi a primeira vez. A primeira vez que eu parei de pensar. Era só sentido. Era só ser. Éramos eu, a gota e o mundo. Mas sem essa divisão que eu to falando agora. Era só uma coisa só. Era a verdade. A verdade. E eu vi e era ao mesmo tempo. Eu vi a verdade. Foi por muito pouco tempo, mas eu vi a verdade. E ela era verde.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O bidê e a insônia

Um homem numa sessão de análise.

Homem: Eu não consigo dormir. Eu não consigo dormir mais. E a culpa é dos fabricantes de bidê. Eu não consigo mais dormir e a culpa é dos fabricantes de bidê. Eu tenho passado noites em claro pensando no bidê. Tenho prazer. Eu me regozijo, por exemplo toda vez que eu entro no banheiro e vejo o bidê. Você entende o bidê? Ele tem exatamente a mesma forma do vaso sanitário. As as pessoas sentam, lá, como sentam no vaso sanitário. Ele inclusive fica quase sempre ao lado do vaso sanitário. Então porque o bidê não tem um assento como o do vaso sanitário? Aquele que os homens levantam na privada para fazer xixi, sabe? Porque é que nenhum fabricante meteu um assento daqueles em cima do bidê? Não tem explicação. Mas a culpa é do fabricantes. A culpa é dos fabricantes! A não ser que os fabricantes de bidê são uns sádicos desgraçados e adoram ver o desespero do usuário ao sentir a região interna das coxas em contato com aquela porcelana gelada! Mas essa explicação seria fácil demais. Eu encontrei uma explicação muito mais lógica. Os fabricantes de bidê são os mesmos fabricantes do chuveirinho. Eu pesquisei. Acompanha meu raciocínio: O lucro por peça fabricada de bidê é de 17,8%. Eu pesquisei. Já o lucro por cada chuveirinho que é vendido ao sair da fábrica é de 21,4. Eu também pesquisei. Eu sei que pode não parecer muito. Mas levando em conta que 8% da população mundial que usa papel higiênico preferem complementar a higiene pós-fecal com água, sai muito mais em conta para os fabricantes que as pessoas deixem de usar bidê e passem a usar chuveirinhos. Por isso eu fui ignorado pelas 143 empresas fabricantes de bidês para as quais eu mandei carta sugerindo o uso de assento nos bidês. Porque eles querem forçar o mundo a parar de comprar bidês. É um complô contra os bidês. Um complô que tá me tirando o sono. Eu não consigo mais dormir. E a culpa é dos fabricantes de bidê.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A primeira vez de um homem

Ela lê jornal.

Homem: Moça.

Mulher: Sim?

Homem: Será que a senhora poderia me dizer como é que é?

Mulher: Como?

Homem: Como é que é?

Mulher: A sua mãe?

Homem: O quê?

Mulher: Como é que é a sua mãe?

Homem: Eu sei como é a minha mãe.

Mulher: Ótimo. Então não precisa me perguntar.

Homem: Mas eu não tava perguntando dela.

Mulher: Como é que eu ia adivinhar.

Homem: Tava falando de lá de dentro.

Mulher: Dentro?

Homem: Como é que é lá dentro?

Mulher: Com paredes.

Homem: E?

Mulher: Teto.

Homem: E…

Mulher: E eu tenho coisas mais interessantes a fazer do que ficar falando com o senhor neste momento.

Homem: Por favor.

Mulher: O Gente Boa de hoje ta um arraso.

Homem: Me conta.

Mulher: E eu ainda nem cheguei na Kogut.

Homem: É que a minha primeira vez.

Mulher: Eu notei.

Homem: Notou?

Mulher: Com o plim do elevador quando o senhor chegou aqui.

Homem: Mas é tão evidente assim?

Mulher: Criança com sarampo.

Homem: Oi?

Mulher: Mais evidente que criança com sarampo.

Homem: Ta escrito na minha testa?

Mulher: No corpo todo, meu senhor, no corpo todo.

Homem: No corpo todo?

Mulher: Se o senhor estivesse plantando bananeira de costas no escuro a cem metros de distância do meu campo de visão, mesmo assim eu teria notado.

Homem: Nossa…

Mulher: Pois é.

Homem: Desculpa…

Mulher: Está perdoado.

Homem: Não, eu não estava pedindo desculpas.

Mulher: O senhor disse “desculpa”.

Homem: É uma forma de começar uma frase.

Mulher: E “está perdoado” é uma forma de cortá-la.

Homem: Por que é que a senhora é tão mau humorada?

Mulher: Porque o senhor é insistente.

Homem: Mas eu só fiz uma pergunta.

Mulher: E eu só estou dando respostas.

Homem: Grossas.

Mulher: Da espessura das minhas respostas cuido eu.

Homem: Tenha sensibilidade.

Mulher: De sensível já basta minha pele.

Homem: É a minha primeira vez!

Mulher: E a minha oitocentésima terceira.

Homem: Eu estou nervoso.

Mulher: E eu estou irritada.

Homem: Por quê?

Mulher: O senhor nasceu.

Homem: Mas será possível que você não pode respeitar a primeira vez de um homem?

Mulher: Quem disse que eu não respeito?

Homem: Então porque a senhora não pode me contar como é?

(pausa)

Mulher: Pra quê o senhor quer saber antes?

Homem: O quê?

Mulher: Pra quê o senhor quer saber antes? O senhor não vai entrar? Lá dentro?

Homem: Vou.

Mulher: Então porque saber antes? Por que o senhor não espera, entra e descobre? A sua primeira vez? Por que o senhor não espera e descobre a sua primeira vez?

(longa pausa)
(o homem espera)
(a sua primeira vez)

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A VOLTA

Mulher: Láudano?

Rapaz: Mantém o corpo quente.

Mulher: Pra quê?

Rapaz: Pras pessoas acharem que ainda tá vivo.

Mulher: Tem certeza que funciona?

Rapaz: Sabe a Fifi?

Mulher: Ahn.

Rapaz: Ela não tá dormindo.

Mulher: Você envenenou minha cadela?

Rapaz: Eu tinha que testar em alguém.

Mulher: Mas precisava ser na Fifi?

Rapaz: Qual a diferença? A gente vai estar morto daqui a meia hora.

Mulher: A cachorra não tem nada a ver com isso.

Rapaz: Melhor morrer envenenada do que morrer de fome.

Mulher: Morrer de fome?

Rapaz: Não ia ter quem cuidasse dela.

Mulher: Alguém ia cuidar.

Rapaz: Quem?

Mulher: Quem quer que encontrasse a gente.

Rapaz: Você quer dizer nossos corpos.

Mulher: É. A gente.

Rapaz: Ela morreria de fome até então. Vai demorar até que encontrem a gente.

Mulher: Os nossos corpos?

Rapaz: Isso. A gente.

Mulher: Por quê?

Rapaz: Eu já te falei. Láudano mata mas mantém o corpo quente.

Mulher: E daí?

Rapaz: Não fede até o terceiro dia.

Mulher: Ah, então não quero.

Rapaz: Não feder até o terceiro dia?

Mulher: Uma morte tão discreta.

Rapaz: Mas a graça é essa. Ninguém vai ter percebido que a gente morreu.

Mulher: Mas não tem a menor graça. O que é que os vizinhos vão dizer?

Rapaz: Por um bom tempo nada.

Mulher: Não pode. Daí o suicídio não faz sentido. A graça tá no comentário. Suicídio só tem graça porque gera comentário.

Rapaz: Agora não tem mais volta.

Mulher: Como não tem mais volta?

Rapaz: Eu já comprei o láudano.

Mulher: Troca por sicuta.

Rapaz: Ele não tinha sicuta.

Mulher: Estricnina então.

Rapaz: A gente tá falando de veneno não de polaina.

Mulher: Polaina?

Rapaz: Que pode trocar em loja. Não é que nem veneno de laboratório. Consegue o que tem.

Mulher: Achei sem graça esse láudano.

Rapaz: É o que tem.

Mulher: Então vamos fazer de uma forma bem ridícula.

Rapaz: De uma forma bem ridícula?

Mulher: Pras pessoas comentarem.

Rapaz: Como assim?

Mulher: Você se veste de Robin e eu fico pelada.

Rapaz: Hein?

Mulher: E a gente toma o veneno deitado na porta da frente.

Rapaz: Deitado na porta da frente?

Mulher: Pra todo mundo ver.

Rapaz: Você pelada e eu de Robin?

Mulher: Se você preferir vai de outra coisa. É que já tem a fantasia do Robin.

Rapaz: E você pelada?

Mulher: Não tem fantasia pra mim.

Rapaz: Você está com cento e trinta quilos.

Mulher: Justamente por isso não tem fantasia pra mim.

Rapaz: Você não tem nem um pouquinho de vergonha?

Mulher: Vergonha de quê?

Rapaz: De ficar pelada em público com cento e trinta quilos?

Mulher: Eu vou estar morta. Pelo menos vai dar o que falar. Vão ficar achando que era algum ritual.

Rapaz: Envolvendo uma mulher de sessenta anos pelada e um homem de vinte e oito usando uma fantasia de super herói?

Mulher: É contemporâneo. Vai pegar a fantasia que eu vou tirando a roupa. O láudano tá onde?

Rapaz: Na garrafa de suco de luz.

Mulher: Suco de luz?

Rapaz: É contemporâneo.

Mulher: Eu vou pegar.

(mulher sai, enquanto rapaz se veste de robin. Ela volta completamente nua)

Mulher: Como é que você sabe que a Fifi morreu mesmo?

Rapaz: Eu misturei láudano com Bonzo.

Mulher: Mas e o efeito? Como é que você sabe que fez efeito?

Rapaz: Eu não sei tirar pulso de cachorro.

Mulher: Ela tá respirando?

Rapaz: Não. Mas a Fifi tem um respirar bem leve. Nem dá pra reparar.

Mulher: É verdade. Ô cadelinha de respiração leve. (pausa) Mas e se ela volta?

Rapaz: Como assim volta?

Mulher: À vida. E se ela volta à vida.

Rapaz: Ela não vai voltar.

Mulher: Como é que você pode ter certeza?

Rapaz: Ela não vai voltar.

Mulher: Tá pronto?

Rapaz: Super.

(os saem da casa e deitam na porta da frente)

Rapaz: Vamos logo que se alguém passa aqui eu morro de vergonha.

Mulher: Melhor. Sobra mais veneno pra mim.

Rapaz: Você vai botar a bunda na minha cara?

Mulher: Tem que ficar um pose ridícula.

Rapaz: Mas assim tá demais…

Mulher: Deixa de ser chato.

Rapaz: Me dá logo esse veneno que eu já tô louco pra morrer.

(Rapaz toma o veneno. Mulher também. Os dois morrem. Trinta segundos depois Fifi volta à vida)

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

GÊNESE

Um menino de 5 anos e uma bicha de uns 60. A bicha é grisalha com feições indígenas.

Bicha: Voal.

Menino: A gente vai voar?

Bicha: Não, criança chata. Voal é um tecido de quinta usado por gente de sexta que acredita que qualquer coisa que levanta quando bate uma brisa é chique.

Menino: Gente de sexta?

Bicha: Seres rastejantes que deixam suas peles encostar em excrementos tais como polyester e chita.

Menino: Mas Chita não é a macaca do Tarzan?

Bicha: Ai… Tarzan… O que um belo corpo não é capaz de fazer com um pedaço de tecido. Transforma qualquer trapinho sujo e esfarrapado numa desejada tanga bem recheada, senhora dos sortilégios lascivos da pura masculinidade.

Menino: O quê?

Bicha: Nada, não.

Menino: Vamos jogar futebol?

Bicha: Cruuuuuuuuuuuzes. Blusa de jerse com calção de nylon? Nem morta.

Menino: Soltar pipa?

Bicha: Só se for com linha de seda.

Menino: Esconde-esconde?

Bicha: Vai ter bofe?

Menino: Que que isso?

ENTRA UMA SENHORA. A BICHA SE RECOMPÕE E VIRA MACHO.

Senhora: Jacinto, a pia da cozinha tá pingando de novo.

Bicha (agora macha): Pode deixar que eu concerto meu amor. E é pra já!

BICHA SAI. FICA SENHORA E MENINO.

Senhora: Ai, seu avô é um homem e tanto. Quando crescer eu queria muito que você fosse igual a ele, Clô. Igual a ele.

Menino: Igualzinho, vovó?

Senhora: Igualzinho.