domingo, 4 de julho de 2010

Em homenagem a estreia de "Os Inocentes" de Rodrigo Nogueira e Julia Spadaccini uma reportagem de fevereiro desse ano sobre a peça

21/02/2010 Livro sobre maio de 1968 ganha versão na peça 'Os Inocentes'

por Jornal do Brasil O turbulento maio de 1968 vem norteando artistas mundo afora. Foi evocado por Mauro Rasi em A cerimônia do adeus, a melhor de suas peças de fundo autobiográfico, registro do rito de passagem de um jovem dividido entre o cotidiano numa cidade do interior paulista e a paixão por Simone de Beauvoir. Ganhou lugar de destaque nas pautas de cineastas como Louis Malle, no ótimo e pouco lembrado Loucuras de uma primavera (1989), e Hans Weingartner, em Edukators (2004), flagrante da intensidade das relações em décadas passadas. A célebre data reverberou ainda em Gilbert Adair, autor do livro The holy innocents que inspirou Bernardo Bertolucci na concepção do filme Os sonhadores (2003), roteirizado pelo próprio Adair. Livro e filme vão desembocam no palco. Trata-se de Os inocentes, texto de Rodrigo Nogueira e Julia Spadaccini, que tem estreia marcada na sala Multiuso do Espaço Sesc, em Copacabana, para 2 de julho.

esquerda: Patrick Sampaio; meio: Lisa Fávero; direita: Michel Blois



Na história de Adair, dois irmãos gêmeos e um amigo (que na peça vão se chamar , respectivamente, Teodoro, Isabela e Mateus) se trancam dentro de um apartamento enquanto Paris explode do lado de fora.
Triângulo amoroso

– Acho que a circunstância dos três fechados num apartamento não deve ser vista como escapismo em relação ao conturbado contexto externo, mas como um mergulho profundo de cada um. Eles quebram dogmas pessoais, espreitam a morte e se fortalecem para encarar a vida – observa César Augusto, integrante da Cia. dos Atores, convidado pelos três (Patrick Sampaio, Lisa Fávero e Michel Blois) para dirigir a montagem.
Em Os inocentes, o espectador acompanhará a evolução do triângulo amoroso entre personagens que perdem a inocência ao tangenciarem os próprios limites numa época de ruptura de padrões comportamentais.

– No livro Adair diz: “Há os que têm coragem para se matar e os que não têm. Os que não têm são os que se matam. No fundo somos todos suicidas” – relata Michel, que interpretará Mateus.
De acordo com Rodrigo Nogueira, Mateus representa o estrangeiro que mostra a Teodoro e Isabela que eles vivem como amantes e não como irmãos.


– Não há julgamento moral no livro; apenas a percepção de que este comportamento gera consequências – sublinha Rodrigo.

O processo de Os inocentes lembra o de outro trabalho recente de Rodrigo, o de construção da dramaturgia de Play, oriunda de Sexo, mentiras e videotape (1989), cultuado filme de Steven Soderbergh. Tanto num projeto como no outro, o parentesco com o cinema ocupa lugar de destaque.

– Quero propor a intervenção do vídeo no espetáculo, de modo que, no final, a realidade passe para a tela e o imaginário fique no palco – diz Rodrigo, sublinhando a suspensão da fronteira entre real e ficção, uma das principais características da sua dramaturgia. – No momento-chave do texto, em que uma pedra entra pela janela do apartamento, a realidade invade a ficção.

A distância entre atores e personagens também será questionada através de jogos cênicos propostos por César Augusto.

– Peço para os atores misturarem histórias pessoais com as dos personagens – assinala César. – Os jogos ajudam a criar uma gramática comum e a fazer com que os atores acionem a criatividade e se afastem da instância cerebral.

A encenação trará referências aos protestos de maio de 1968, desprendendo-se possivelmente de menções diretas, como o polêmico afastamento do pesquisador Henri Langlois da Cinemateca Francesa.
– Queremos mostrar que o mundo se fechou naquele momento, não só os três personagens ou a cidade de Paris. Tudo ficou mais claustrofóbico – complementa César.

Contexto brasileiro

Ainda assim, conexões com o contexto brasileiro são não só quase inevitáveis como desejadas.


– Espero que não fiquemos presos a um passado de referências. Mas o passado nos foi negado. No Brasil muita gente não admite que houve um golpe de estado. Existem lacunas que precisam ser preenchidas – aponta César, evocando o período que marcou o acirramento da ditadura no Brasil com a implantação do AI-5.

Gilbert Adair se mostrou aberto às propostas de apropriação de seu livro.

– Lisa entrou em contato com ele, que liberou os direitos de graça. Ficamos livres para fazer a adaptação. Adair pediu apenas para ver o espetáculo, sem custo de passagem incluído – comemora Patrick Sampaio, integrante, ao lado de Lisa Fávero, do Brecha Coletivo, proponente de Os inocentes.
Na verdade, a ideia de transportar The holy innocents para o palco partiu de Lisa e foi apadrinhada por seu tio, o ator Fernando Eiras, que figura como supervisor do projeto. A iniciativa ganhou força com a conquista da verba de R$ 50 mil do Prêmio Myriam Muniz.


– O Brecha funciona como um coletivo aberto. Não existem pessoas fixas. Elas se aproximam de acordo com cada projeto. Há atores, cantores, músicos, cineastas, fotógrafos. Investimos em várias frentes: vídeos, performances, dança – detalha Lisa.

Uma filosofia próxima da Pequena Orquestra, coletivo do qual Michel Blois, Rodrigo Nogueira e Fernanda Felix (assistente de direção) fazem parte, e da própria Cia. dos Atores, apesar de o grupo capitaneado por Enrique Diaz ser formado pelos mesmos oito integrantes presentes desde a fundação.

– Somos pessoas completamente diferentes umas das outras há 21 anos. Por isto, cada um é livre para aderir ou não a novos prejetos. O processo de individualização dentro do coletivo é revolucionário – garante César.


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