sexta-feira, 21 de maio de 2010

Sessão Matinê

Um cinema vazio. Uma mulher está sentada olhando fixamente para frente esperando o filme começar. Entra um homem e começa a experimentar cadeiras para escolher seu lugar. Ele vai se sentando nas cadeiras e desistindo. Finalmente ele se senta numa cadeira ao lado da mulher. Parece gostar e fica. Um tempo. A mulher estranha. Ela fica um bom tempo olhando pra ele. Ele, alheio à situação começa a tirar coisas da mochila. Um saco de pipoca. Um refrigerante. Um sorvete gelado. A mulher olha cada vez mais horrorizada pra ele. Começa a se irritar.

Homem: Tudo bem?

Mulher: Não. Não está tudo bem. Não tem como estar tudo bem. Aliás é impossível que esteja tudo bem, né?

Homem: Ai, que pena. Você quer falar sobre o assunto. A gente ainda tem uns cinco minutos até o filme começar e eu sou ótimo conselheiro.

Mulher: O quê???

Homem: Aposto que foi briga com o namorado. Sozinha no cinema, numa sessão de comédia romântica e ainda por cima com essa cara de sorvete de morango é porque brigou com o namorado.

Mulher: É o quê?

Homem: Cara de sorvete de morango, nunca ouviu falar? Aquela cara que a gente faz quando é criança, comeu todo arroz com peixe que a sua mãe botou no prato, ta louco esperando pela sobremesa, daí vem sorvete de morango, sabe? Você crente que é um chocolate, flocos, até creme, ainda vai. Mas vem sorvete de morango. Pra quê, gente? Que criança que gosta de sorvete de morango? É sempre uma decepção. E ele sempre é rejeitado no pote do Napolitano, já reparou? Fica aquele desnível...

Mulher: Você tem algum problema?

Homem: Eu não. Quem tem é você, esquecidinha. Você que disse que não estava tudo bem, lembra? Por causa do seu namorado.

Mulher: Que namorado?

Homem: Então terminou, coitada?

Mulher: Não, não tem nenhum namorado.

Homem: Ah, então esse é que é o problema. Ta carente?

Mulher: O problema é você!

Homem: Eu?

Mulher: É você! Por que é que você escolheu exatamente esse lugar pra se sentar?

Homem: É um bom lugar, você não acha?

Mulher: É óbvio que eu acho um bom lugar senão eu não estaria sentada aqui. A questão não é essa. O fato é que esse cinema tem 527 lugares. E nós estamos numa sessão matinê de terça-feira. Caso você não tenha notado só tem onze pessoas nessa sala além de mim e de você.

Homem: E verdade. Adoro cinema vazio. Dá pra gente....

Mulher: Concluindo então que existem 514 lugares vagos nessa sala. E você escolheu justamente esse aqui do meu lado.

Homem: E daí?

Mulher: Mas como e daí. E daí que uma falta de respeito. Você está invadindo o meu espaço pessoal.

Homem: Seu espaço pessoal?

Mulher: Meu espaço pessoal.

Homem: Como assim espaço pessoal?

Mulher: Espaço pessoal, espaço pessoal. Você nunca ouviu falar em espaço pessoal? Quinesfera. Raio íntimo.

Homem: Raio íntimo? Você ta falando de absorvente?

Mulher: Não, eu estou falando sobre espaço pessoal: a circunferência corpórea que delimita as fronteiras da invasão intermitente entre um ser humano e outro.

Homem: É reforma agrária agora?

Mulher: Todo mundo tem um espaço pessoal. Uma área em volta de si que denota individualidade. E você, sentando ao meu lado está invadindo o meu espaço pessoal. E a invasão do espaço pessoal é uma coisa muito séria. É como se você estivesse dividindo o mesmo vaso sanitário comigo num banheiro público. Já imaginou, você sentado numa privada de um banheiro de shopping e eu pedindo pra você: “me dá uma licencinha pra eu usar esse cantinho”.

Homem: Ia ser uma loucura, né?

Mulher: Ainda bem que você concorda.

Homem: Por que se isso acontecesse que dizer que ou você estaria no banheiro masculino ou eu no feminino. Doideira total.

Mulher: Não é essa a questão. A questão é que nesse momento, você invadiu o meu espaço pessoal sentando ao meu lado nessa sessão de cinema!

Homem: Mas se a sala estivesse lotada e esse fosse o único lugar vago eu sentaria aqui.

Mulher: Mas é completamente diferente!

Homem: Mas como assim diferente?

Mulher: É diferente porque se a sala estivesse lotada o meu espaço pessoal se resumiria ao espaço do meu assento. Mas com a sala vazia o raio do meu espaço pessoal cresce proporcionalmente ao tamanho do vazio da sala. Então se hoje somos 13 pessoas numa sala de 524 lugares, cada um tem um espaço pessoal de 40,3 assentos. Isso distribuído numa circunferência dá cinco assentos em cada direção. Quer dizer que você poderia ter escolhido cinco pra cá, cinco pra lá, cinco prali, cinco prali, cinco pra trás, cinco pra lá, cinco pra esse lado, e cinco pra lá. Olha quantas possibilidades.

Homem: Desculpa...

Mulher: Olha, se você tivesse sentado a três assentos da minha distância eu até aceitaria. Acharia estranho, mas aceitaria. A dois, eu ia ficar extremamente incomodada. Agora do meu lado. É impossível. Eu não posso assistir ao filme com alguém do meu lado.

Homem: Mas por quê?

Mulher: Você ainda não entendeu? Tá tão claro! Não dá pra assistir a um filme se uma pessoa que você não conhece invade o seu espaço pessoal.

Homem: Ah. Me desculpa. Eu realmente fui muito mal educado.

Mulher: Ainda bem que você se tocou!

Homem: Onde é que eu estava com a cabeça?

Mulher: Eu não sei mas...

Homem: Eu estou completamente errado.

Mulher: Que bom que você percebeu...

Homem: O meu nome é José Roberto Guimarães Costa. Costa por parte pai e Guimarães também. Porque minha mãe não quis botar o sobrenome dela nos filhos, que era Nogueira. Dizia que dava azar. Deu azar pra família dela inteira.

Mulher: Por quê?

Homem: Porque ela foi criada numa fazenda e tinha um caseiro, o seu Nogueira, que andava metido com magia negra, matava uns porcos de vez em quando...

Mulher: Não. Por que é que você tá me falando isso?

Homem: Ué, gente. Você não falou que é impossível assistir um filme se alguém que você não conhece está no seu espaço pessoal. Então. Eu tô tentando fazer com que você me conheça para que eu esteja habilitado a sentar no seu espaço pessoal.

Mulher: E você acha que só me falando o seu nome e contando uma historinha idiota sobre a sua mãe você já está habilitado pra entrar no meu espaço pessoal?


Homem: o quê?


Mulher: Era só o que me faltava. Um maluco que começa a falar umas baboseiras e já pensa que é meu amigo.

Homem: Como?

Mulher: Francamente...

Homem: Mas peraí. Em primeiro lugar, você não falou nada sobre grau de conhecimento de uma pessoa para que ela esteja habilitada pra entrar no seu espaço pessoal. Você só disse que precisava conhecer essa pessoa. É não é?

Mulher: É mas...

Homem: Eu me apresentei pra você. Você não só sabe o meu nome como o meu sobrenome e a origem dele! Certo?

Mulher: Certo...

Homem: E em segundo lugar, essa historia que eu contei pra você sobre o seu Nogueira, que você chamou de idiota é uma história muito séria. Eu tenho um complexo enorme de não carregar o nome de família da minha mãe. Eu passei a infância inteira sendo rejeitado pela minha avó materna por causa disso.

Mulher: Mas eu não disse que...

Homem: Fora os pesadelos que eu tive que enfrentar a minha vida inteira com aquele caseiro macumbeiro. Era toda noite sonhando com sangue e tripa de porco. Durante onze anos da minha vida. É muita dor, muita dor pra alguém chegar e chamar de história idiota...

Mulher: Espera aí, em nenhum momento eu quis...

Homem: E em terceiro lugar... Em terceiro lugar (começa a chorar)

Mulher: Me desculpa eu...

Homem: Desculpa não. Humilhação tem limite. Você nunca ouviu aquela frase: a liberdade de um termina onde começa a liberdade do outro? Você não pode fazer qualquer coisa pra preservar o seu espaço pessoal.

Mulher: Olha José Roberto...

Homem: Não me chama pelo nome não. Não me chama pelo nome que eu nem te conheço.

Mulher: Como assim?

Homem: Inclusive se você sabe o meu nome e minha história de vida eu não sei nada sobre a sua, agora o estranho aqui é você. Então me diz, que é que está invadindo o espaço pessoal de quem? Hein? Me diz! Fala!

Mulher:...

Homem: Portanto, estranho, pegue a sua pipoca e saia do meu espaço pessoal. Isso quer dizer que você pode escolher qualquer lugar, desde que seja cinco pra cá, cinco pra lá, cinco prali, cinco prali, cinco pra trás, cinco pra lá, cinco pra esse lado, e cinco pra lá. Olha quantas possibilidades!

Um comentário:

Anônimo disse...

hahaha depois dessa eu ia embora do cinema!! oO meu... o Rodrigo escreve muitoo bem!!! :D ;D